Nos últimos 3 mil anos os 64 hexagramas chineses foram guia espiritual, manual de governo e fonte para a ciência moderna.
A lenda
Certo dia, lá pelo ano 3000 a. C. , Fu Hsi, o primeiro imperador da China, passeava pelas margens do rio Amarelo, no norte do país. Contam as lendas que Fu Hsi não era apenas um soberano sábio, mas também o homem que inventou a escrita, o matrimônio e a arte da costura. Naquele dia, caminhando pela beira das águas, o imperador multimídia fez sua descoberta mais intrigante. No meio do passeio, Fu Hsi viu uma criatura emergir das águas para descansar às margens do rio:corpo de dragão, cabeça de cavalo (os mitos garantem que bichos fabulosos eram corriqueiros na fauna chinesa). Aproximando-se, o sábio notou que havia 8 símbolos geométricos inscritos nas costas da criatura. Cada imagem era composta por séries de 3 linhas:algumas inteiras (–), outras partidas (), como você pode observar nestas páginas. No momento em que colocou os olhos neles, o soberano teve uma iluminação divina. Achou que aqueles signos continham a chave para todos os segredos do Universo. Memorizou a seqüência de símbolos –que mais tarde seriam batizados de trigramas e os deixou para seus descendentes e sucessores, com uma dica:quem os estudasse ganharia o poder e o conhecimento sobre todas as coisas.
Em algum momento da Antiguidade, os trigramas foram combinados uns com os outros e deram origem a 64 símbolos formados por 6 linhas – os hexagramas. Ao longo dos séculos, os 64 símbolos ganharam comentários e foram organizados em forma de livros –e os livros guardados a sete chaves nos palácios dos reis e nas bibliotecas de feiticeiros e eruditos. Os chineses levavam ao pé da letra (e alguns ainda levam)a tradição que herdaram de seus ancestrais remotos:naquela obra, estaria a solução para todas as equações do Universo.
Segundo historiadores antigos, como o chinês Sima Quien, que viveu uns 200 anos antes de Cristo, o I Ching teve 4 autores –e Fu Hsi foi apenas o primeiro deles. Hoje, a maior parte dos estudiosos coloca em dúvida a existência de Fu Hsi. “Quando atribuem a ele a origem dos hexagramas, os chineses querem dizer, simplesmente, que os símbolos são mais antigos que toda a memória histórica ”, escreve o sinólogo alemão Richard Wilhelm, no prefácio de sua tradução do I Ching , publicada na Europa em 1923. Entre 3000 e 2000 a. C. , os 64 hexagramas foram compilados em forma de livro na época, um “livro ”era um feixe de tábuas de bambu amarrados pela extremidade, já que o papel só surgiria na China durante o século 2. Nessa forma, o “livro ”passou com registros históricos confiáveis à 1 ªdinastia –os Shang, que reinaram de 1600 a. C. a 1070 a. C.
Em diversos impérios que ocupavam o território da atual China, ninguém questionava o poder dos hexagramas –mas a maneira de interpretar sua sabedoria oculta variou imensamente. O significado dos trigramas era relativamente simples:cada um representava, ao mesmo tempo, uma característica da natureza (céu, terra, trovão, água, montanha, vento, fogo e lago)e um traço da psique (criatividade, abrigo, agitação, melancolia, constância, flexibilidade, iluminação, serenidade).
Dois símbolos combinados, por outro lado, eram enigmáticos. Muitas das interpretações inventadas para decifra-los foram acrescentadas ao livro –o I Ching , como o conhecemos hoje, são os 64 símbolos misteriosos mais um calhamaço de comentários feitos durante 6 séculos, pelo menos. O problema é que as tais explicações, na maior parte das vezes, são tão confusas que só aprofundam o mistério. Experimente, por exemplo, abrir o livro logo na primeira página – você vai encontrar um hexagrama chamado Chien (“O criativo ”). Logo abaixo, diversas interpretações escritas em forma de verso, por volta do século 11 a. C. Primeiro, uma frase corriqueira:“Sucesso. A perseverança recompensa ”. Logo adiante, o seguinte imbróglio: “Vôo hesitante sobre as profundezas. Subitamente, você vê uma revoada de dragões sem cabeça ”. Deu para sentir o drama, não?.
Yin e yang
Apesar da dificuldade de entender esses provérbios, chineses de todas as classes – desde os plebeus que aravam os campos até os reis e generais que comandavam exércitos –consultavam o livro na hora do aperto. A consulta seguia um ritual complicado:50 caules de uma planta chamada milefólio eram várias vezes chacoalhados e lançados sobre uma mesa (veja ao lado). A posição das varetas dava origem a uma seqüência numérica que por sua vez indicava um dos 64 hexagramas. E os sábios chineses interpretavam cada um como conselho divino, uma chave para entender os acontecimentos presentes e a melhor maneira de agir no futuro.
A filosofia chinesa encarava o Universo como uma massa de energia em constante transformação –e os 64 símbolos seriam retratos de padrões cósmicos que se repetem e se alternam constantemente. Esses padrões ou estágios de metamorfose ocorrem tanto na mente humana e nas relações sociais quanto nos fenômenos da natureza –ou seja, abarcam tudo, desde os problemas domésticos de um camponês até o movimento das galáxias. Daí o primeiro nome do livro, que na época era apenas I , “Mutações ” .
Para entender a essência de cada hexagrama, é preciso desmonta-lo:a chave dos símbolos está nas linhas que os compõem. “Linhas inteiras representavam o céu, enquanto linhas interrompidas indicavam a terra ”, explica o monge budista Gustavo Alberto Corrêa Pinto, que traduziu o I Ching para o português na década de 1980. Na China antiga, acreditava-se que a Terra estava parada no centro do Universo, enquanto o céu, com seu séquito de constelações, nuvens, pássaros e meteoros, movia-se ao redor dela. Do céu vinham a luz e a chuva, que fecundavam o solo e davam origem à vida. Por isso, a linha inteira significa o elemento ativo, luminoso, masculino do Universo;a linha quebrada era o feminino, o escuro, o repouso.
Com o tempo, essas energias opostas, mas complementares, ganharam nomes próprios (e foi com esses nomes que se tornaram notórias no Ocidente, milhares de anos depois):yang e yin. As duas palavras significam, literalmente, o lado sombrio e o lado iluminado de uma montanha. Em termos filosóficos, elas simbolizam todos os opostos que formam o mundo. Cada hexagrama seria uma combinação de luz e sombra, macho e fêmea, ação e imobilidade, ímpeto e paciência, yin e yang – formando uma dança cósmica de opostos que rege o Universo.
Até os tempos da dinastia Shang (por volta dos séculos 18 a 11 a. C. ), os adivinhos que estudavam o I não colocavam suas interpretações por escrito. O livro era só uma coleção muda de símbolos mágicos, sem nenhuma notinha de rodapé. Os primeiros textos explicando a natureza de cada “mutação ”foram compostos nos últimos anos da dinastia Shang, em meio a intrigas políticas e guerra civil.
Segundo a lenda, Chou Hsin, o último imperador Shang, que reinou em meados do século 11 a. C. , era famoso como pinguço e temido por sua terrível crueldade. Os nobres do reino, cansados dos seus shows de horrores, tramaram a queda do déspota. O líder da conspiração era um certo conde Wen, que governava uma província no noroeste da China (por coincidência, a região tinha o mesmo nome do soberano doido Chou). Durante algum lapso de sobriedade entre suas ressacas homéricas, o imperador foi informado da tramóia. Não deu outra: Wen foi preso e jogado no calabouço. Nas sombras da prisão, o conde rebelde se tornou o segundo autor do Livro das Mutações.
Os primeiros textos
Wen aparece nas lendas como um sábio versado nas artes da profecia. Segundo o historiador Ma Rong, do século 2, o conde passava o tempo na prisão meditando sobre o significado dos símbolos. Resolveu preservar suas interpretações para a posteridade:batizou cada hexagrama com um nome, resumindo suas características essenciais. O primeiro hexagrama, formado apenas por linhas inteiras ou yang, chamou-se Chien, o criativo. O segundo, só com linhas quebradas ou yin, foi batizado de Kun, o receptivo. Os demais símbolos, que são uma salada mista de yang e yin, ganharam nomes como Conflito, Paz, Estagnação e assim por diante. Além disso, Wen escreveu textos em forma de poemas, que mais tarde foram acrescentados ao corpo do livro, com o nome de Julgamentos –e lá estão até hoje. Os versos de Wen contêm conselhos curtinhos – dignos daquelas mensagens em biscoitinhos da sorte ou horóscopos. O texto do hexagrama 4, por exemplo, diz:“Se você é sincero, terá luz e sucesso ”.
Após 7 anos de prisão, Wen voltou a ver a luz do dia. Assim que botou os pés fora da cadeia, passou a conspirar contra o soberano Chou. Retornou à província de Chou, reuniu exércitos, cativou a lealdade do poo. E, por volta de 1180 a. C. , declarou guerra ao imperador. Seus exércitos marcharam contra a capital Youli, mas não rápido o bastante: Wen, que estava velhinho, morreu antes de sentir o gosto da vitória. Os louros couberam a seus filhos, Wu e Dan. Ambos aniquilaram as forças imperiais em batalhas tão violentas que, segundo a lenda, rios de sangue correram pelos campos da China. Chou Hsin foi cercado na capital; vendo que tudo estava perdido, resolveu partir em grande estilo e tocou fogo no próprio palácio. Morreu queimado – com todo seu harém.
Os conquistadores inauguraram uma nova dinastia –que, em homenagem à região, chamou-se Chou. Nos anos seguintes, a China foi governada por Dan, conhecido como duque de Chou. A ligação com o Livro das Mutações devia correr mesmo no sangue da família: enquanto organizava o reino e combatia rebeldes, Dan seguiu os passos do pai e escreveu mais uma batelada de interpretações para os hexagramas. O terceiro autor do I Ching é bem mais obscuro que o segundo. Os textos do duque de Chou (acrescentados ao livro com o título de Imagens) hoje soam quase psicodélicos. Aquelas linhas sobre revoada de dragões sem cabeça, que você encontrou no início da reportagem, são assinadas por ele. Outras pérolas: “Erga o bastão de jade;alguma coisa vai cair do céu ”(no hexagrama 44);“A raposa espia:ela ê porcos enlameados se aproximando e uma carroça cheia de fantasmas ”(hexagrama 38). Frases que não fariam feio em uma música de Bob Dylan ou num poema dadaísta.
Com o tempo, a língua chinesa mudou, e aqueles versos em estilo arcaico tornaram-se enigmáticos para os próprios chineses. Todas as passagens que reproduzimos aqui, a propósito, são traduções aproximadas. “Depois de alguns séculos, ninguém tinha a menor idéia do que os Julgamentos e as Imagens realmente significavam. Os textos eram tão ambíguos que praticamente qualquer interpretação podia ser dada a eles ”, escreve o lingüista britânico Richard Rutt no livro Zhouyi:The Book of Changes , de 2002 (“I Ching:O Livro das Mutações ”, sem edição no Brasil). Hoje, há tantas explicações para as charadas de Wen e Dan quanto há tradutores e estudiosos do I Ching.
O sinólogo Steve Marshall, também britânico, acredita que o enigma tem uma explicação relativamente simples:os ersos confusos seriam referências cifradas a fatos históricos. Exemplo disso é uma linha que o duque de Chou compôs para o hexagrama 55:“O arado é visto ao meio-dia ”. Segundo Marshall, o tal varado ”era o nome dado pelos chineses a um grupo de 7 estrelas que integra a constelação da Ursa Maior. O texto indicaria um eclipse total do Sol por volta do ano 1070 a. C. , que teria escurecido toda a China e feito com que as estrelas brilhassem em pleno dia. Antigas tradições dizem que a queda dos Shang foi anunciada por apavorantes fenômenos naturais na terra e no céu, sinal da ira divina contra o imperador louco – e Marshall acredita que o verso do duque celebra o fato. Os textos do I Ching seriam, portanto, uma espécie de livro de história codificado. “Ele tem uma narrativa oculta por trás de muitas de suas sentenças enigmáticas ”, escreve ele na obra The Mandate of Heaven:Hidden His ory in the I Ching, de 2001 (“O Mandamento Divino: A História Oculta no I Ching ”, também sem edição brasileira).
A vez de Confúcio
Os descendentes do conde Wen governaram a China até o século 3 a. C. Foi uma época de ouro:a literatura floresceu, as artes se refinaram. Por volta do século 6 a. C. , os hexagramas e suas interpretações já eram considerados o maior clássico da China –ainda que a maior parte das pessoas não entendesse seu significado. A dinastia Chou adotou o livro como uma espécie de manual de governo –tanto que, na época, a obra ganhou um segundo nome, ChouI , “Mutações dos Chou ”. Para entender os conselhos de seus prolixos ancestrais, os Chou precisavam de intérpretes bem gabaritados:na corte, havia uma ordem de xamãs cuja especialidade era tirar conselhos administrativos dos hexagramas. Embora o uso “mágico ”seguisse em alta, intelectuais chineses voltaram sua atenção para o lado filosófico do livro, deixando de lado o que achavam pura superstição. O grande responsável por essa transição foi, precisamente, o maior filósofo chinês de todos os tempos: Kung Fu Tsé, que no Ocidente ficou famoso pelo apelido latinizado, Confúcio.
Confúcio, que nasceu em 531 a. C. , não era um sujeito supersticioso. Mesmo assim, ele passava horas e horas lançando as varetas de milefólio e estudando os hexagramas. “O I Ching o deliciava ”, afirma Sima Quien em uma biografia escrita 400 anos mais tarde. Confúcio dedicou boa parte da vida à organização e crítica dos grandes clássicos da literatura chinesa, que na época andavam meio espalhados em tomos caóticos. Colocou as obras em ordem e acrescentou-lhes capítulos e comentários. O resultado é a coleção chamada Seis Clássicos Confucianos – obra que todo candidato a sábio devia saber na ponta da língua. Nos séculos seguintes, a leitura dos Seis Clássicos seria requisito para quem quisesse fazer concursos públicos e trabalhar no governo. E o primeiro título da lista, adivinhe qual era?Sim:as Mutações de Chou , que Confúcio rebatizou com o nome que traz até hoje, I Ching .
Segundo Sima Quien, Confúcio foi o quarto autor do I Ching . Escreveu copiosas interpretações para os versos do clã Chou –mais tarde, esses comentários ganhariam o nome de Dez Asas . Ele não buscava oráculos para o futuro nem receitas para tirar ouro da cartola. Era, antes de mais nada, um moralista:acreditava que uma sociedade perfeita só seria construída quando todos os membros de uma nação se esforçassem por cultivar a ética individual. “Nas 64 situações descritas no livro, ele procurava indicações sobre a maneira mais moral de agir em determinadas circunstâncias ”, explica o sinólogo Mário Spoviero, da USP.
Por exemplo: Confúcio viu no primeiro hexagrama, formado apenas por linhas sólidas, um emblema das 4 maiores virtudes da ética chinesa –amor, respeito à tradição, justiça e sabedoria. Quem encarnasse o hexagrama Chien seria o homem ideal para erguer impérios. “Ele se eleva acima da multidão de seres e todas as terras se unem em paz ”, escreveu Confúcio.
Os anos passaram, a glória dos Chou ficou para trás e outras dinastias se seguiram – mas o I Ching permaneceu impávido. Na Idade Média (por volta do ano 1070), um filósofo chamado Shao Yong criou uma disposição alternativa para os hexagramas, começando por Kun, o receptivo, e terminando por Chien, o criativo. Segundo ele, essa ordem seguia uma seqüência matemática mais precisa e era a disposição correta segundo os desígnios dos deuses. Séculos depois, a “ordem de Shao Yong ”serviu de passaporte para que o I Ching migrasse da filosofia antiga para os braços da ciência moderna.
.:: Revista Super Interessante
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ResponderExcluiresse livro e bom
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