domingo, 14 de março de 2010

A fonte do poder, no oráculo de Delfos

Novas Interpretações

DURANTE A NOSSA PRIMEIRA pesquisa de campo, em 1996, realizamos investigações geológicas e examinamos as fundações do templo, expostas pelos arqueólogos franceses. O templo apresentava algumas características anômalas que exigiam uma interpretação especial de suas funções, mesmo que os relatos de Plutarco e outros não tivessem sido preservados. Em primeiro lugar, a parte interna do santuário é mais baixa, situando-se entre 2 e 4 metros abaixo do nível do solo circundante. Em segundo lugar, é assimétrica: uma interrupção na colunata interna alojava uma estrutura hoje desaparecida. Em terceiro lugar, construída diretamente sobre as fundações da área interrompida, há um elaborado escoadouro para água de fonte, junto com outras passagens subterrâneas. Assim, o templo de Apolo parecia planejado mais para conter um pedaço particular de terreno que incluía uma fonte do que para proporcionar, conforme a função normal de um templo, uma morada à imagem do deus.

Durante esta primeira exploração, localizamos a linha leste-oeste da falha principal, chamada de falha de Delfos, que de Boer havia observado anteriormente. Mais tarde descobrimos a superfície exposta de uma segunda falha em uma ribanceira acima do templo. Esta segunda linha, que chamamos de falha de Kerna, ia do noroeste para o sudeste, cruzando a falha de Delfos no local do oráculo. Uma linha de fontes que atravessava o santuário e cruzava o templo marcava a localização da falha de Kerna abaixo da antiga plataforma e das ruínas de pedras.

Neste mesmo ano, a equipe arqueológica e geológica de Michael D. Higgins e Reynold Higgins (pai e filho) publicou um livro sugerindo que estávamos na pista certa. Em seu Geological Companion to Greece and the Aegean, assinalam que a linha de fontes sugeria de fato a presença de uma - falha abrupta - indo de noroeste para sudeste através do santuário. Eles apontavam também que não havia nenhuma razão geológica para rejeitar a antiga tradição.

Higgins e Higgins teorizaram que o gás emitido poderia conter dióxido de carbono. Na década anterior, outra equipe científica detectara uma emissão semelhante em outro templo de Apolo, em Hierápolis (atual Parnukkale) na Ásia Menor (atual Turquia e sede de ruínas de várias e extensas cidades gregas). Seguindo a pista de Estrabão, os pesquisadores modernos descobriram que o templo de Apolo em Hierápolis fora deliberadamente construído sobre uma abertura de gases tóxicos que, após concluído o templo, emergiam a partir de uma gruta nas fundações da construção.




O templo em Hierápolis não era um lugar de profecia e o dióxido de carbono não era exatamente um tóxico inebriante, utilizado, isso sim, para tirar a vida dos animais destinados aos sacrifícios, de pássaros a touros. Ainda hoje o gás, emitido irregularmente, mata os pássaros que pousam sobre a cerca de arame farpado construída para manter as pessoas afastadas. Outros templos de Apolo na Turquia, entretanto, eram oraculares e foram construídos sobre fontes ativas, como os templos em Didyma e Claros. Parecia surgir assim uma conexão evidente entre os templos de Apolo e os locais de atividade geológica.

O Gás Perfeito

EMBORA AS FALHAS RECÉM-DESCOBERTAS em Delfos indicassem que os gases e a água da fonte pudessem ter alcançado a superfície através das rachaduras abaixo do templo criadas pelas falhas, não explicavam a produção dos próprios gases. De Boer, entretanto, observara depósitos de travertino, fluxos de calcita, depositados pela água da fonte, revestindo os declives acima do templo e até mesmo uma antiga parede de arrimo. Esses fluxos sugeriram a de Boer que a água subia, através de profundas camadas de pedra calcária, para a superfície, onde depositava mineralizações de calcita (um fenômeno observado também em Hierápolis, na Turquia). Um exame dos estudos geológicos gregos sobre o Monte Parnaso revelou que havia, entre as formações rochosas cretáceas nas proximidades do templo, camadas de calcário betuminoso que continham a elevada taxa de 20% de uma matéria petroquímica.

De Boer percebeu que um sistema tomava forma. As falhas, que estavam bem evidentes nas inclinações salientes do Monte Parnaso, atravessavam o calcário betuminoso. O movimento ao longo das falhas criava a fricção que aquecia o calcário até o ponto em que as substâncias petroquímicas vaporizavam. Estas subiam então ao longo da falha junto com a água da fonte, especialmente nos pontos em que o falhamento cruzado tornava a rocha mais permeável. Com o passar do tempo, a obstrução dos espaços no interior da falha pelas crostas de calcita causava a diminuição das emissões de gás, que só eram restabelecidas após um novo deslizamento tectônico.




O raciocínio de de Boer parecia estar de acordo com as descobertas dos arqueólogos franceses no início do século 20, que haviam finalmente alcançado o leito de rocha sob o ádito poucos anos após a publicação do artigo de Oppé. Abaixo de um estrato de argila marrom eles encontraram a rocha que tinha uma - fissura provocada pela ação das águas -. Acreditamos que essas fissuras foram criadas mais pelas falhas e deslocamentos que pela água, embora elas possam ter sido, com o tempo, ampliadas pela água subterrânea; em tentativas anteriores de alcançar o leito de rocha os arqueólogos franceses observaram que as cavidades permaneciam cheias de água. Acreditamos ainda que a rachadura visível no ádito possa ter sido uma fissura que se estendeu pela camada de argila acima do leito de rocha atravessado pela falha.

Uma meticulosa pesquisa geológica, aliada ao raciocínio, resolveu um enigma atrás do outro, mas restava ainda a questão de quais gases teriam ascendido. De Boer sabia que geólogos trabalhando no golfo do México haviam analisado gases que formavam bolhas ao longo de falhas submersas. Eles descobriram que falhas ativas nesta área de calcário betuminoso estavam produzindo gases leves de hidrocarboneto, como o etano e o metano. O mesmo não poderia ter acontecido em Delfos?

Para investigarmos, pedimos permissão para colher amostras da fonte de Delfos, bem como amostras da rocha de calcário depositada pelas antigas fontes. Esperávamos descobrir nesta rocha porosa vestígios dos gases trazidos à superfície em épocas remotas. Nesse momento, o químico Chanton juntou-se à equipe. Nas amostras de calcário coletadas por de Boer e Hale ele encontrou metano e etano, produto da decomposição do etileno. Chanton foi então para a Grécia coletar amostras das fontes situadas no local do oráculo e em torno dele. A análise da fonte de Kerna revelou a presença de metano, etano e etileno. Como o etileno apresentava um aroma agradável, a presença deste gás parecia apoiar a descrição de Plutarco de um gás cujo cheiro se assemelhava ao de um sofisticado perfume.

Para ajudar a interpretar os possíveis efeitos que tais gases produziriam em pessoas alojadas em um espaço restrito como o ádito, o toxicólogo Spiller integrou o projeto. Seu trabalho com os adolescentes usuários de drogas que ficavam agitados ao inalar substâncias como cola e tíner, muitas das quais contêm gases leves de hidrocarboneto, revelava uma série de paralelos com o relato do estado de transe experimentado pela pitonisa.




Spiller descobriu ainda outros paralelos nos experimentos sobre as propriedades anestésicas do etileno realizados há cinqüenta anos por Isabella Herb, pioneira americana em anestesia. Ela descobriu que uma mistura com 20% de etileno produzia um estado de inconsciência e que concentrações mais baixas induziam um estado de transe. Na maioria dos casos, o transe era benigno: o paciente permanecia consciente, era capaz de se sentar e de responder perguntas, experimentava sensações físicas e euforia e tinha amnésia após retirado o gás. Ocasionalmente, porém, Herb observou reações violentas: o paciente emitia gritos enfurecidos e incoerentes e realizava movimentos descontrolados. Se o paciente tivesse vomitado durante este estado de exaltação, e parte do vômito penetrado em seus pulmões, a conseqüência seria, inevitavelmente, pneumonia e morte. Assim, de acordo com a análise de Spiller, a inalação do etileno poderia explicar as várias descrições dadas aos efeitos do pneuma em Delfos: seu aroma agradável e as diversas influências exercidas sobre as pessoas, inclusive o seu potencial letal.

Uma Inspiração Inesperada

HÁ 2 MIL ANOS PLUTARCO estava interessado em reconciliar religião e ciência. Na qualidade de sacerdote de Apolo, teve de responder aos religiosos conservadores, que discordavam da noção de que um deus usasse um incerto gás natural para realizar um milagre. Por que não entrar no corpo da mulher diretamente? Plutarco acreditava que os deuses precisavam confiar nas substâncias deste mundo corrupto e transitório para realizar suas tarefas. Embora um deus, Apolo era obrigado a comunicar suas profecias por meio das vozes dos mortais e, para isso, precisava inspirá-los com estímulos que pertenciam ao mundo natural. As meticulosas observações de Plutarco e o seu relato sobre as emissões gasosas em Delfos revelam que os antigos não tentavam excluir a investigação científica da compreensão religiosa.

A principal lição que extraímos do projeto oráculo de Delfos não é a surrada mensagem de que a ciência moderna pode esclarecer curiosidades antigas. Mais importante, talvez, é compreender que temos muito a ganhar se abordarmos os problemas com a mente aberta e com enfoque interdisciplinar, como o preferido pelos gregos.

RESUMO / Uma História Inebriante

No século passado os estudiosos qualificaram como mito a explicação tradicional segundo a qual vapores que emergiam da terra intoxicavam e inspiravam as sacerdotisas profetisas de Delfos.

- Descobertas científicas recentes mostram que esta explicação era, de fato, extraordinariamente precisa.

- Os autores identificaram, em particular, duas falhas geológicas que se cruzavam precisamente sob o local do oráculo.

- Ricas camadas petroquímicas nas formações calcárias da região produziam, provavelmente, etileno, gás que leva a um estado de transe e que pode ter ascendido através das fissuras criadas pelas falhas.


<--1ª Parte


.:: Scientific American Brasil

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