domingo, 14 de março de 2010

A fonte do poder, no oráculo de Delfos

Encontro de ciência e religião, nesse antigo templo grego, permite que mecanismos naturais ampliem a magia da realidade






O templo de Apolo, incrustado na fascinante paisagem montanhosa de Delfos, abrigava o poderoso oráculo e era o mais importante local religioso do antigo mundo grego. Os generais buscavam conselhos do oráculo a respeito de estratégias de guerra. Os colonizadores procuravam orientação antes de suas expedições para a Itália, Espanha e África. Os cidadãos consultavam-no sobre investimentos e problemas de saúde. As recomendações do oráculo emergem de forma notável nos mitos. Quando Orestes perguntou-lhe se deveria vingar a morte de seu pai, assassinado por sua mãe, o oráculo encorajou-o. Édipo, avisado pelo oráculo de que mataria o pai e se casaria com a mãe, esforçou-se para evitar este destino, mas fracassou de forma célebre.

O oráculo de Delfos funcionava em uma área específica, o ádito ou - área proibida -, no núcleo do templo, e por meio de uma pessoa específica, a pitonisa, escolhida para falar, como uma médium possuída, em nome de Apolo, o deus da profecia. A pitonisa era mulher, algo surpreendente se levarmos em conta a misoginia grega. E, contrastando com a maioria dos sacerdotes e sacerdotisas gregas, a pitonisa não herdava sua posição pela nobreza de seus vínculos familiares. Embora devesse ser natural de Delfos, poderia ser velha ou jovem, rica ou pobre, bem-educada ou analfabeta. Ela passava por um longo e intenso período de treinamento, assistida por uma congregação de mulheres de Delfos, que zelavam pelo eterno fogo sagrado do templo.

A Explicação Clássica

A TRADIÇÃO ATRIBUÍA a inspiração profética do poderoso oráculo a fenômenos geológicos: uma fenda na terra, um vapor que subia dela e uma fonte de água. Há mais ou menos um século, os estudiosos rejeitaram esta explicação quando os arqueólogos, escavando o local, não encontraram qualquer sinal de fenda ou gases. Mas o antigo testemunho está bastante difundido e provém de várias fontes: historiadores como Plínio e Diodoro, filósofos como Platão, os poetas Ésquilo e Cícero, o geógrafo Estrabão, o escritor e viajante Pausânias e até mesmo um sacerdote de Apolo que serviu em Delfos, o famoso ensaísta e biógrafo Plutarco.Estrabão (64 a.C.- 25 d.C.) escreveu: "Eles dizem que a sede do oráculo é uma profunda gruta oculta na terra, com uma estreita abertura por onde sobe um pneuma (gás, vapor, respiração, daí as nossas palavras - pneumático - e - pneumonia -) que produz a possessão divina. Um trípode é colocado em cima desta fenda e, sentada nele, a pitonisa inala o vapor e profetiza".


A ÚNICA REPRESENTAÇÃO da sacerdotisa, ou pitonisa, de Delfos,
da época em que o oráculo estava ativo, mostra a câmara de teto baixo
e a pitonisa sentada em um trípode. Em uma das mãos ela segura
um ramo de louro (a árvoresagrada de Apolo); na outra ela
segura uma taça contendo, provavelmente, água proveniente
de uma fonte e que penetrava, borbulhando, na câmara, trazendo
consigo gases que levavam a um estado de transe.
Esta cena mitológica mostra o rei Egeu de Atenas consultando
a primeira pitonisa, Têmis.A peça foi feita
por um oleiro ateniense em torno de 440 a.C.

Plutarco (46-120 d.C.) deixou um extenso testemunho sobre o funcionamento do oráculo. Descreveu as relações entre o deus, a mulher e o gás, comparando Apolo a um músico, a mulher a seu instrumento e o pneuma ao plectro, com o qual ele a tocava para fazê-la falar. Plutarco enfatizou que o pneuma era apenas um elemento que desencadeava o processo.
A ÚNICA REPRESENTAÇÃO da sacerdotisa, ou pitonisa, de Delfos, da época em que o oráculo estava ativo, mostra a câmara de teto baixo e a pitonisa sentada em um trípode. Em uma das mãos ela segura um ramo de louro (a árvore sagrada de Apolo); na outra ela segura uma taça contendo, provavelmente, água proveniente de uma fonte e que penetrava, borbulhando, na câmara, trazendo consigo gases que levavam a um estado de transe. Esta cena mitológica mostra o rei Egeu de Atenas consultando a primeira pitonisa, Têmis.

De fato, era o treinamento prévio e a purificação (que incluía, certamente, a abstinência sexual e, possivelmente, o jejum) da mulher escolhida que a tornavam sensível à exposição ao pneuma. Uma pessoa comum poderia sentir o cheiro do gás sem entrar em transe oracular.

Plutarco também relatou algumas características físicas do pneuma. Seu cheiro assemelhava-se ao de um delicado perfume. Era emitido, - como se viesse de uma fonte -, no ádito em que a pitonisa estava acomodada, mas os sacerdotes e as pessoas que iam consultá-la podiam, em algumas ocasiões, sentir o aroma na antecâmara onde aguardavam as respostas.

O pneuma podia surgir como um gás livre, ou na água. Na época de Plutarco, a emissão tornara-se fraca e irregular, o que causara, em sua opinião, o enfraquecimento da influência do oráculo de Delfos nos assuntos do mundo. Ele sugeriu que, ou a essência vital esgotara-se, ou que intensas chuvas a diluíram. Ou, ainda, que um terremoto havia mais de 4 séculos bloqueara, em parte, esse escoamento. Talvez, considerou, o vapor tivesse encontrado uma nova passagem. As teorias de Plutarco sobre a redução da emissão deixam claro que ele localizava sua origem numa rocha abaixo do templo.

Um viajante da geração seguinte, Pausânias, ecoa a menção de Plutarco ao surgimento do pneuma na água. Pausânias relata ter visto, no declive acima do templo, uma fonte de água chamada Kassotis, que, segundo ouvira, mergulhava no subsolo e emergia novamente no ádito, onde suas águas tornavam as mulheres proféticas.

Plutarco e outras fontes assinalam que, durante as sessões normais, a mulher que servia como pitonisa estava em um transe suave. Ela era capaz de sentar-se aprumada no trípode e passar um tempo razoável ali (embora, se a fila de pessoas que pediam conselhos fosse longa, uma segunda e até mesmo uma terceira pitonisa pudessem substituí-la). Ela podia ouvir as questões e respondê-las de forma inteligível. Durante as sessões oraculares, a pitonisa falava com voz alterada e tendia a cantar as respostas, permitindo-se jogos de palavras e trocadilhos. Após a sessão, segundo Plutarco, ela se parecia com um corredor após uma maratona, ou uma dançarina ao final de uma dança extática.

Em uma ocasião, que ou o próprio Plutarco ou um de seus colegas testemunharam, as autoridades do templo forçaram a pitonisa a profetizar em um dia não propício, para agradar os membros de uma importante comitiva. Relutante, ela se dirigiu para o ádito subterrâneo e foi imediatamente tomada por um espírito poderoso e maligno. Neste estado de possessão, em vez de falar ou cantar como fazia, gemeu e gritou, jogou-se ao chão violentamente e precipitou-se em direção às portas, onde desmaiou. Os sacerdotes e as pessoas que a consultavam, assustados, inicialmente fugiram. Mas voltaram mais tarde e a recolheram. Alguns dias depois ela morreu.

A Nova Tradição

GERAÇÕES DE ESTUDIOSOS aceitaram essas explicações. Mas, por volta de 1900, um jovem especialista em temas do mundo clássico, o inglês Adolphe Paul Oppé, visitou as escavações conduzidas por arqueólogos franceses em Delfos. Não encontrou qualquer fenda, nem conseguiu obter informação sobre gases, publicando um influente artigo onde apresentava três teses críticas. Em primeiro lugar, nenhuma fenda ou emissão gasosa jamais existira no templo em Delfos. Em segundo, ainda que tivesse existido, nenhum gás natural poderia produzir um estado que se assemelhasse a uma possessão espiritual. Em terceiro, o relato de Plutarco sobre a pitonisa que passara por um violento frenesi, e morrera logo depois, era inconsistente com a descrição costumeira de uma pitonisa sentada em um trípode, cantando as suas profecias. Oppé concluiu que todo o antigo testemunho podia ser invalidado.

A demolidora investida de Oppé tomou o mundo acadêmico de assalto. Suas opiniões foram expressas de forma tão vigorosa que passou a ser a nova ortodoxia. A ausência da ampla abertura que os arqueólogos franceses esperavam encontrar parecia provar os seus argumentos. Um apoio adicional para a teoria de Oppé surgiu em 1950, quando o arqueólogo francês Pierre Amandry acrescentou que apenas uma área vulcânica, algo que Delfos não era, poderia ter produzido um gás como aquele descrito pelos autores clássicos. O caso parecia encerrado. A tradição original dos autores gregos e latinos sobrevivia somente nos livros populares e nas palavras dos guias locais. Na opinião de Oppé, esses autores seriam a fonte do mito da fenda e do vapor.


DUAS FALHAS GEOLÓGICAS cruzavam-se sob
o Templo de Apolo em Delfos. Esta intersecção
(acima e detalhes na pág. oposta) tornava
a rocha mais permeável e abria caminhos
(imagem de corte) ao longo dos quais
tanto a água subterrânea como os gases
podiam ascender. A atividade tectônica aquecia
a rocha adjacente às falhas a temperaturas
suficientemente elevadas para vaporizar
alguns de seus elementos petroquímicos.
Esses vapores gasosos passavam pelas fissuras
criadas pelas falhas e chegavam até a pequena
câmara fechada que estava de 2 a 4 metros abaixo do nível
do solo do templo, câmara onde o oráculo profetizava.

A situação mudou nos anos 80, quando um projeto de desenvolvimento das Nações Unidas realizou uma pesquisa na Grécia sobre as falhas ativas (aquelas ao longo das quais terremotos foram gerados durante as últimas centenas de anos). Na qualidade de membro da equipe de pesquisa, um de nós (o geólogo de Boer) observou superfícies de falhas expostas a leste e a oeste do santuário. Segundo sua interpretação, essas superfícies marcariam a linha de uma falha que corria ao longo da inclinação ao sul do Monte Parnaso e sob o local em que ficava o oráculo. Ciente da tradição clássica, mas desconhecendo o ceticismo e a demolidora investida moderna, ele não deu maior importância à sua observação.

Mais de dez anos depois, de Boer encontrou outro de nós (o arqueólogo Hale) em um sítio arqueológico em Portugal, onde Hale investigava a opinião geológica de de Boer sobre a evidência de um terremoto que teria causado estragos em uma vila romana. Enquanto bebiam uma garrafa de vinho, de Boer mencionou que havia observado a falha sob o templo em Delfos. Hale, que aprendera a teoria consagrada enquanto estudante, discordou. Mas, durante a animada conversa que se seguiu, de Boer convenceu-o com sua descrição da falha, com uma explicação de como as falhas poderiam conduzir os gases até a superfície e suas referências aos autores clássicos. Compreendendo a importância da observação para a interpretação das antigas explicações, os dois decidiram formar uma equipe para explorar melhor o local.


2ª Parte -->

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