segunda-feira, 8 de março de 2010

Tróia: A Guerra dos Deuses

As divindades não assumiram uma posição na guerra apenas em seu início, mas sim, durante todo o confronto, ora beneficiando os invasores, ora ajudando os atacados. "Atena colocou-se do lado dos aqueus, para ajudá-los, enquanto Ares, o deus que se alegra com a guerra, foi para o lado dos troianos. Deuses e homens misturavam-se na terrível disputa. Também estavam presentes Deimos e Fobos, filhos de Ares, que semeiam o pavor por onde passam, e Éris, a discórdia, irmã de Ares", conta o helenista turco Menelaos Stephanides, em seu livro Ilíada: a guerra de Tróia.

Ílion, no entanto, era mesmo inexpugnável. Do alto das enormes muralhas, os soldados sitiados repeliam os inimigos com lanças, dardos e flechas. As numerosas bigas aquéias eram inúteis naquela situação. Os invasores, então, construíram um enorme cavalo de madeira e deixaram nos portões da cidade. Acreditando ser um presente dos deuses, os troianos levaram a estátua para dentro da cidade e banquetearam até o meio da madrugada. Porém, os melhores heróis de Agamenon estavam escondidos dentro do construto: eles desembarcaram e abriram as portas para o restante do exército. Os inimigos foram massacrados e, finalmente, após dez anos de batalhas, Tróia era destruída.

Nem tudo é verdade na narrativa da guerra, mas os gregos daquela época acreditavam integralmente na história. Os deuses, para os helenos, realmente estiveram naquele conflito. E não estavam na costa do Egeu apenas como expectadores. "Nessa guerra não combateram apenas homens, mas também deuses, que lutaram ainda com maior obstinação que os mortais. Na verdade, a guerra funesta não teria eclodido se os deuses não a houvessem desejado primeiro. Nisso acreditavam os homens daquela época", escreveu Stephanides.

De fato, aqueus e troianos devem mesmo ter se batido por dez anos no século XVIII a.C. Micenas, provaram os arqueólogos, realmente tinha relações comerciais com povos asiáticos e com a própria Tróia. A questão é que quem dominasse os portos da cidade de Príamo teria a hegemonia do Egeu.


Aquiles, triunfante, arrasta o corpo de Heitor em frente aos
portões de Tróia - afresco do alemão Franz Matsch (1861-1942).


ILÍADA E EDUCAÇÃO

Os combates entre esses heróis e a influência dos deuses, segundo o helenista alemão Werner Jaeger, foram usados por Homero para despertar a virtude, chamada de arete - era um atributo próprio da nobreza, só alcançado por aqueles que impeliam na batalha de forma verdadeiramente heróica. O poeta, continua o pesquisador, considera que virtude era a qualidade moral ou espiritual dos homens, além de seu empenho em busca da glória e da perfeição. "No conceito cavalheiresco, a vitória e a luta são a prova autêntica da virtude humana."

A Ilíada, para Jaeger, é um "testemunho da elevada consciência educadora da nobreza grega primitiva", pois desde aquele período já se mirava na busca pela virtude suprema. Os mitos dos heróis, portanto, eram essenciais para mostrar às pessoas que a ânsia pela honra e pela glória eram sinais claros de arete. Até mesmo o sábio Platão considerava Homero como o grande educador da Hélade.

A narrativa mitológica da batalha, portanto, é muito mais do que um simples estilo estético e literário usado para engrandecer o relato de um conflito bélico. Mais importante do que isso, os elementos míticos eram fundamentais para transmitir essa idéia de glória baseada no sacrifício ao povo. "Uma prova da íntima conexão entre a epopéia e o mito é o fato de Homero usar exemplos míticos para todas as situações imagináveis da vida em que um homem pode estar na presença de outro para o aconselhálo, advertir, admoestar, exortar e lhe proibir ou ordenar qualquer coisa", explica Jaeger.


Aquiles ataca Heitor - obra de Peter Paul Rubens (1577-1640).
Segundo a mitologia, Tróia nunca cairia enquanto Heitor estivesse vivo.

O helenista continua, em seu livro Paidéia: "O mito serve sempre de instância normativa para a qual apela o orador. Há no seu âmago alguma coisa que tem validade universal. Não tem caráter meramente fictício, embora originalmente seja sem dúvida alguma o sedimento de acontecimentos histórico que alcançaram a imortalidade atrás de uma longa tradição e de interpretação enaltecedora da fantasia criadora da posteridade."

De acordo com Homero, o ponto de partida para a educação nasce a partir do cultivo das qualidades do herói. Sendo assim, os mitos presentes em sua obra serviam de exemplo para mostrar aos gregos quais eram as características essenciais e inexoráveis de um legítimo filho da Hélade, dotado de arete e sempre disposto a se sacrificar por um bem maior, ou seja, havia muito altruísmo naquela sociedade.

Uma prova dessa "utilidade" educadora do mito em prol da virtude está presente em uma fala de Heitor na Ilíada. Na passagem, o príncipe troiano afirma que "lutar pela pátria é um bom augúrio". Vale ressaltar que esse mesmo personagem é morto nas portas da cidade, sob o olhar de centenas de conterrâneos, em uma luta individual contra Aquiles. De forma dramática, ele é estocado no pescoço pelo herói aqueu e morre em agonia. Seu corpo, depois, é violado pelo inimigo: o filho de Tétis amarra o rival em sua biga e o arrasta até o acampamento de Agamenon.

Para Jaeger, a Ilíada é o "testemunho da elevada consciência educadora da nobreza grega primitiva".

DA MONARQUIA À DEMOCRACIA

Alguns séculos depois da guerra de Tróia, os tempos mudaram na Hélade e muitos costumes locais foram substituídos. Os gregos já não podiam mais viver sob aquele tipo de sociedade, na qual monarcas mandavam com poderes irrestritos, e isso demandava alterações radicais. Contudo, vale lembrar que Ílion não foi o único reino destruído naquela época. Segundo o historiador Robert Drews, da Universidade de Vanderbilt (Estados Unidos), inúmeros palácios caíram naquele período, causando o fim da Idade do Bronze. Tebas, Micenas, Tirinto e Canaã tiveram o mesmo destino da cidade de Príamo.

Um dos motivos foi a mudança na estrutura militar. No caso da Hélade, os gregos abriram mão das eficientes cavalarias e, com isso, desenvolveram um novo tipo de estratégia bélica para fortalecer as infantarias. O problema é que, até então, os carros de guerra eram as armas mais eficazes de combate: um condutor bem treinado guiava a biga enquanto "passageiros" atiravam lanças e flechas nos inimigos. Os novos exércitos foram obrigados a encontrar formas de combater essas máquinas militares de forma mais eficiente.

Com isso, as batalhas envolvendo cavalarias e bigas foram substituídas por pelejas entre homens a pé, os cidadãos-soldados: pessoas que passavam a fazer parte da sociedade de forma mais incisiva e, além disso, vivenciavam a rotina do exército e da polis.

Assim, os clãs foram extintos, para que todos os homens fossem agrupados em uma mesma cidade, onde poderiam treinar em conjunto por mais tempo para se preparar melhor para a guerra. Isso fez que não tivessem apenas relações familiares, mas sim com os pares, criando um sentimento de cidadania coletiva. Era uma forma de despertar conceitos cívicos nas pessoas. Além disso, os heróis também se transformaram em figuras ultrapassadas. Não havia mais espaço para guerreiros como Aquiles e Heitor, que deixavam os companheiros para trás a fim de ir de encontro ao adversário para obter glórias individuais. Tudo passa a girar em torno da sobrevivência da cidade: os soldados deveriam permanecer unidos no campo de batalha para minimizar os riscos de derrota e, desta forma, resguardar a polis. "O herói homérico, o bom condutor de carros, podia ainda sobreviver na pessoa do hippeis; já não tem muita coisa em comum com o hoplita, esse soldado-cidadão. O que contava no primeiro era a façanha individual, a proeza feita em combate singular", explica o helenista Jean-Pierre Vernant em seu clássico As origens do pensamento grego. "Mas o hoplita não conhece o combate singular; deve recusar, se lhe oferecer, a tentação de uma proeza puramente individual. É o homem da batalha de braço a braço, da luta ombro a ombro. Foi treinado em manter a posição, marchar em ordem, lançar-se com passos iguais contra o inimigo, cuidar, no meio da peleja, de não deixar sem posto."


Os troianos arrastam o cavalo deixado pelos gregos para dentro de Tróia -
obra do pintor italiano Giovanni Domenico Tiepolo (1727- 1804) argumenta
que o desejo está sempre relacionado à autodenominação do sujeito.


Depois da guerra de Tróia, não havia mais espaço para guerreiros como Aquiles e Heitor, que buscavam glórias individuais

Nesse novo conceito de exército, as infantarias dependiam muito da força do conjunto e da unidade, portanto, todos os homens deveriam se unir como um só bloco para vencer as batalhas. Surgem aí as temíveis falanges, em que os guerreiros passavam a vida toda treinando para desenvolver uma "dependência" de um para com o outro. Deste modo, os generais formavam unidades de combate sólidas e coesas - como ocorreu com a eficiente infantaria de Esparta, que de tão competente foi apelidada de "usina de cadáveres" durante a Segunda Guerra Médica.

Com a mudança, os monarcas também perderam seu espaço, afinal, os homens já viviam em conjunto para o bem comum da polis, então, sentiam-se capazes de decidir os rumos políticos da cidade-estado. O cidadão passa a se confundir com o soldado, pois a partir do momento em que ganha direitos, também assume seus deveres com a defesa da pátria. Os reis espartanos foram reduzidos a meros generais, sem desempenhar funções administrativas, mas apenas militares. Em seu lugar, quem passou a tomar as decisões políticas foram os conselhos criados pelo legislador Licurgo, que na verdade são os primeiros focos de instituições democráticas no Mundo Antigo.

O período da grande batalha de Tróia e das memoráveis aretéias entre heróis lendários chegava ao fim porque os homens, treinados para ficar unidos nas guerras, passaram a querer lutar juntos para decidir os rumos da comunidade, de forma coletiva. Caem os reis e, no lugar, ergue-se a imponente democracia. "A formação do exército no período clássico carrega elementos das relações sociais, tanto no caso dos espartanos como dos atenienses", explica Álvaro Allegrette, da PUC. "Com as mudanças sociais, as pessoas passaram a viver em comunidade e, assim, as relações entre os cidadãos fica mais evidente."

A polis, explica Werner Jaeger, representa um princípio novo para os helenos, com reflexos importantes para a vida nas cidades, e surge também a definição de Estado, criado em Esparta: essa instituição pública representa, pela primeira vez, o agente educador do povo.

Hesíodo, outro poeta grego da Antiguidade, dizia que o heroísmo não surge apenas nos combates. Segundo ele, em O Trabalho e os Dias, o verdadeiro herói mítico e exemplar é forjado em qualquer situação nas quais a disciplina é necessária para enaltecer as qualidades humanas. Um desses momentos era o ato erguer-se na ágora e, dotado de um senso cidadão apurado, incitar o povo a votar por mudanças importantes para a vida coletiva. Isso reforça a idéia de que era fundamental aprimorar a erudição do povo. A educação seria, portanto, uma forma de obter mais condições de tomar decisões coletivas corretas. Surgem, assim, os políticos (a própria palavra deriva de polis).


<--1ª Parte


.:: Leituras da História

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