segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Escravidão e liberdade no seio da antiguidade

A escravidão começou a ser vista como instituição abominável
e desumana apenas após o Iluminismo, no séc. XVIII.
A revolução industrial no mesmo período tornou economicamente
plausível a busca por uma sociedade livre de escravos.


LIBERTOS, FORASTEIROS E LIBERTINOS

Os escravos manumitidos eram tidos como xenoi, estrangeiros, o que significava que não possuíam direitos políticos, não lhes era permitido possuir terras e casar com cidadãos e, ao menos em Atenas, pagavam um imposto especial. Libertos que se estabelecessem em Atenas eram registrados como metecos e como tais pagavam o metoikion (taxa que distinguia os metecos de outros estrangeiros e dos cidadãos), eram alistados para serviço militar e, caso fossem ricos, faziam contribuições monetárias à cidade. Se, por ventura, a polis reconhecesse a lealdade e generosidade de alguns libertos, esses podiam ganhar a isenção de impostos e até a cidadania. Registros de outras cidades gregas nas regiões de Fócis, Etólia, Tessália e Epiro indicam uma diferente condição de liberto se comparada àquela em Atenas, pois os libertos podiam ter terras e o direito à cidadania.

Escravos libertos eram tidos como estrangeiros em Atenas e pagavam impostos especiais


Taça de prata do século II d.C.
dedicada aos deuses Mercúrio e
Maya pelo liberto P. Aelius Eutychus.

Essa divisão da categoria dos libertos devido a diferentes combinações de escravidão e liberdade é bem ilustrada por uma passagem dos Anais, do historiador latino Cornélio Tácito (55-120 d.C.). Narra ele, que, em 56 d.C., no conselho do imperador Nero, ocorreu uma discussão sobre uma decisão do Senado de conceder aos patronos o direito de revogar a liberdade dos libertos que se mostrassem ingratos (Anais, 13, 26-27), mas prontamente um grupo mostrou-se contrário à proposta com os seguintes argumentos: "Que a culpa de poucos devia ser-lhes pessoalmente danosa, mas sem retirar os direitos do conjunto. Pois este corpo era já muito numeroso. Dele provinha a maior parte das tribos, das decúrias, dos auxiliares de magistrados e sacerdotes e dos soldados alistados nas coortes urbanas. E grande parte dos cavaleiros e muitos senadores não tinham outra origem. Caso se separasse os filhos de libertos, o pequeno número dos homens nascidos livres seria evidente. Não fora em vão que os antigos, quando estabeleceram a divisão das ordens, consideraram a liberdade como bem comum. E tinham estabelecido dois meios de conferi-la, a fim de dar tempo ao arrependimento ou a um novo benefício. Todos aqueles a quem o patrono não tivesse conferido liberdade com as formalidades legais eram mantidos sob um certo vínculo de escravidão. Antes de se conceder a liberdade era necessário examinar os méritos com vagar, mas não revogar o que fora concedido". (Anais, 13, 27)

Havia um reconhecimento positivo do passado servil para a construção da liberdade

A renovação do corpo de cidadãos a partir da escravidão era, portanto, um mecanismo social comum à sociedade romana. É, contudo, difícil quantificar a regularidade da manumissão na Antiguidade greco-romana. Seria toda sociedade escravista, no fundo, indisposta à manumissão, como crêem certos pesquisadores? Talvez a questão seja mais de ordem qualitativa. Mesmo que os índices de manumissão fossem baixos, os escravos tinham como horizonte de expectativa a liberdade, ensejando determinadas estratégias para obtê-la.


SONHO DE LIBERDADE: A manumissão fornecia ao escravo a
possibilidade de libertação e incorporação ao império. Esse vínculo
com o senhor sugere um padrão mediterrâneo de escravidão.
Acima, Mercado de Escravos, de Gustave Boulanger (1824-1888).


SERVOS DE PAI E MÃE

Embora a escravidão e a servidão sejam consideradas formas diversas de obtenção de trabalho, guardam certas similaridades. Ambas eram geralmente hereditárias, com o status transmitido aos descendentes. Ainda que sejam consideradas instituições involuntárias, há também registros de casos em que indivíduos colocavam-se voluntariamente nessas condições subalternas para fins de sobrevivência. Do ponto de vista das diferenças, o servo não é propriedade do senhor; estava preso à terra que pertencia a outrem, prestando-lhe certas obrigações. Na Idade Média, os servos não tinham plena posse de patrimônio, cuja parte é detida pelo senhor e não transmitida a descendentes, e deviam taxas, como a formariage, paga após o casamento, revelando uma limitação de liberdade matrimonial.

Se, por um lado, não podemos equiparar o servo ao escravo, há que se notar que a servidão implicava num abuso corporal comparável àquele retratado nas evidências greco-romanas relativas à escravidão. Por exemplo, nos Capítulos do Projeto de Concórdia entre camponeses e seus senhores na Catalunha do século XV registrou-se a seguinte queixa: "Em muitas partes do dito principado de Catalunha, alguns senhores pretendem e observam que os ditos camponeses podem justa ou injustamente ser maltratados à sua inteira vontade, mantidos em ferros e cadeias e freqüentemente recebem golpes. Desejam e suplicam os ditos camponeses que isto seja suprimido e não possam ser mais maltratados por seus senhores, a não ser por meio da justiça".

MEU ESCRAVO, MEU AMIGO

Os libertos no mundo grego e romano, a despeito de diferenças no tocante à obtenção de cidadania, compartilhavam um elemento comum e importante para a compreensão da mentalidade servil, que aparece materializada nas inúmeras inscrições encontradas na bacia do Mediterrâneo: um reconhecimento positivo do passado servil para a construção da liberdade. Além da inscrição do liberto grego Sósias, citada acima, podemos transcrever a inscrição conservada na tumba de um liberto em Pompéia, cidade italiana soterrada pelas cinzas do Vesúvio em 79 d.C.:

"Publius Vesonius Phileros, liberto [libertus] e Augustal, fez este monumento enquanto vivia para si e sua patrona, Vesonia, filha de Publius, e para Marcus Orfellius Faustus, liberto de Marcus, amigo."

Esta tumba contém três estátuas - das pessoas citadas na inscrição - e Phileros aparece vestindo uma toga, atributo de um cidadão romano. O título de Augustal era conferido àqueles indivíduos responsáveis pelo culto imperial nas cidades do Império. A tumba funcionava como um túmulo familiar, com Vesonia, a patrona do liberto, representando a fundadora da família, à qual Publius manifesta seu pertencimento. Os exescravos tornavam então públicas suas identidades a partir dos laços de dependência com seus senhores. Não há vergonha no passado servil, pelo menos entre aqueles libertos que lograram galgar uma projeção em suas comunidades.

Os estudos clássicos ainda estão presos a distinções que impedem uma visão mais inter-relacionada das sociedades antigas

Essa íntima associação entre escravidão e liberdade na Antiguidade greco-romana faz-nos refletir sobre a separação que ambos os conceitos sofreram na cultura ocidental, principalmente a partir do século XVIII, com a Revolução Francesa, e com o movimento abolicionista na Europa e Américas. Também nos leva a ponderar sobre a arbitrariedade das divisões que comumente aplicamos ao estudo do passado. As modalidades de manumissão na Grécia e Itália clássicas, com seus pontos de aproximação, não seriam indicativas de um "padrão mediterrânico de escravidão"?

Enfim, os estudos clássicos ainda estão presos a certas distinções que impedem uma visão mais inter-relacionada das sociedades antigas, de modo que estudos comparados são bem-vindos para compreender a complexidade de suas modalidades de trabalho compulsório e relações escravistas.

"O HOMEM BOM, apesar de escravo, É LIVRE; O MAL, mesmo reinando, É UM ESCRAVO, e não o escravo de um único homem, mas - o que é pior - o escravo de tantos mestres quantos forem seus vícios."
Santo Agostinho


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.:: Revista História Viva

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