sábado, 27 de março de 2010

As lições do Peloponeso e as semelhanças com a Guerra Fria

A disputa entre Atenas e Esparta, no século 5 a.C., foi muito parecida com as décadas de tensão da Guerra Fria. A diferença é que as duas potências gregas não ficaram só nas ameaças




Hesitação prudente passou a ser covardia; moderação tornou-se sinônimo de falta de hombridade. A sociedade ficou cindida em dois campos, nos quais homem nenhum confiava em um amigo.” Essas palavras horrorizadas foram escritas pelo grego Tucídides, que acompanhou a Guerra do Peloponeso, travada entre 431 a.C. e 404 a.C. Um dos fundadores da ciência que hoje chamamos de história, ele previu que aquele duelo, que opôs Atenas e Esparta, mudaria para sempre o mundo grego.

Ali não estavam em jogo apenas território e riqueza, mas dois estilos opostos de vida. De um lado, a democracia de Atenas. De outro, a conservadora Esparta, comandada por uma pequena elite militarizada. E as duas não lutaram sozinhas. Atenas liderava as cidades-estado filiadas à Liga de Delos, promovendo seu modelo democrático em todas elas. Já Esparta era a líder de outro grupo de comunidades, a Liga do Peloponeso, em que a regra era o governo oligárquico.

“Generais, diplomatas, políticos e estudiosos comparam as condições que levaram à guerra na Grécia com o que poderia ter ocorrido na época da Guerra Fria”, diz o historiador americano Donald Kagan em A Guerra do Peloponeso. Lançado no Brasil no fim de 2006, o livro une os textos clássicos de Tucídides a descobertas recentes para compor um retrato detalhado do conflito. E, conhecendo de perto essa trágica história, não é difícil encontrar semelhanças entre a situação bipolar vivida pelos gregos e a rivalidade que assombrou o mundo na segunda metade do século 20. A tensão entre os Estados Unidos e a União Soviética surgiu depois do fim da Segunda Guerra, em 1945. Após se unirem para derrotar a Alemanha de Hitler, os dois países emergiram como superpotências rivais. Os americanos pretendiam espalhar pelo mundo o capitalismo e a democracia, enquanto os soviéticos buscavam disseminar o socialismo.

A rixa entre Atenas e Esparta também começou após uma estrondosa vitória conjunta. Em 479 a.C., na batalha de Platéia, as duas cidades-estado tinham liderado os gregos na expulsão dos invasores persas. Pouco depois, entretanto, a desconfiança mútua tomou conta de ambas as aliadas. Esparta temia a supremacia naval de Atenas, que continuou à frente dos gregos na luta para libertar as cidades-estado da Ásia ainda sob domínio persa. Nos anos seguintes, Atenas encheu o cofre com pilhagens das batalhas e estendeu sua esfera de influência por todo o mar Egeu, consolidando a Liga de Delos.

Mas os atenienses também se sentiam inseguros diante dos espartanos. Enquanto Atenas tinha expandido sua influência pelo mar, Esparta havia utilizado seu disciplinado exército para ganhar a supremacia no interior da península do Peloponeso, ao sul da Grécia. Com o “quintal” em ordem, o que impediria os espartanos de clamar por mais poder?

A paranóia de Atenas acabou se concretizando num tipo de construção que, nos anos 1960, viraria o grande símbolo da Guerra Fria em Berlim, na Alemanha. Temendo um ataque repentino de Esparta, os atenienses decidiram erguer um muro em volta de si. Os espartanos nada disseram (segundo Tucídides, ficaram “secretamente amargurados”). Mas, depois que a muralha foi construída, os radicais de Esparta propuseram um ataque imediato. Foram contidos após um intenso debate.

A situação, porém, se complicaria ainda mais. Em 465 a.C., Esparta enfrentou uma revolta de escravos. Como oficialmente todas as cidades-estado que haviam lutado contra os persas ainda eram aliadas, várias partes da Grécia saíram em seu socorro. Atenas não foi exceção: mandou um grupo de hoplitas (soldados que usavam armaduras). Os espartanos, porém, pediram que eles se retirassem dali, levando junto suas “idéias perigosas”. O medo, claro, era de que o povo de Esparta se sentisse atraído pela democracia. Os atenienses se retiraram, mas ficaram ofendidos. Desmancharam a aliança com Esparta e firmaram um pacto com a cidade-estado de Argos, o pior inimigo dos espartanos. E mais: acolheu de braços abertos os escravos sobreviventes do levante, expulsos de Esparta.

Em 459 a.C, 20 anos após a vitória sobre os persas, a relação entre as duas superpotências gregas já estava deteriorada. Cidades-estado menores começaram, então, a tirar proveito da instabilidade para lutar entre si. Foi o caso de Corinto e Megara, que entraram numa disputa por fronteiras. Ambas estavam na esfera de influência de Esparta, que optou por não intervir no conflito. Megara, sentindo-se prejudicada, foi buscar a ajuda de Atenas, que topou entrar na guerra a seu favor. O problema é que Corinto fazia parte da Liga do Peloponeso, encabeçada pelos espartanos.

O conflito localizado deu origem a quase 15 anos de batalhas entre os aliados de Atenas e os de Esparta. As duas apoiaram seus protegidos, mas não chegaram a se enfrentar diretamente em conflitos de larga escala. Quando Esparta por fim se preparou para invadir Atenas, os pacifistas dos dois lados conseguiram, na última hora, forjar um acordo chamado de “Paz dos Trinta Anos”, encerrando as hostilidades em 446 a.C. O tratado estabelecia que nenhuma das superpotências podia interferir nas áreas de influência da rival e que os membros das alianças não podiam mudar de lado. O mundo grego foi formalmente dividido em dois. Como ocorreu com americanos e soviéticos, mais de 2 mil anos depois, o medo de atenienses e espartanos parecia maior que a vontade de brigar. Parecia.

Vias de fato

A paz foi posta em xeque pela primeira vez em 440 a.C., quando Samos, poderoso membro da Liga de Delos, revoltou-se contra Atenas. O que era uma fogueira virou um incêndio, pois os insurgentes logo conseguiram apoio da Pérsia. Sabendo disso, os radicais espartanos convocaram uma assembléia, reunindo toda a Liga do Peloponeso. Segundo eles, era a hora ideal de atacar Atenas. Manobrando nos bastidores, os pacifistas prevaleceram de novo (e Atenas esmagou a revolta).

A situação se inverteu tempos depois, quando a Córcira, uma cidade neutra, entrou em guerra contra Corinto. Vendo que iam levar a pior, os córciros apelaram para Atenas. Relutando em entrar no jogo contra um membro da Liga do Peloponeso, os atenienses concordaram apenas em enviar uma pequena força de dez navios para atuar de modo defensivo, caso Corinto tentasse atacar a frota da Córcira. Foi o que ocorreu. Graças aos atenienses, os coríntios acabaram levando uma surra. Corinto reclamou a Esparta, acusando Atenas de interferência indevida no conflito. Os espartanos, entretanto, resistiram a ir à guerra.

Testada pela terceira vez, a paz não resistiu. Megara, que havia se aliado a Esparta, foi punida por Atenas com um bloqueio comercial. Em 432 a.C., diante das reclamações contra o “imperialismo” de Atenas, os espartanos convocaram seus aliados para uma assembléia. Os atenienses também foram chamados a se explicar. Seus diplomatas não queriam entrar em guerra contra Esparta. Mas escolheram o jeito errado de evitar o conflito. Diante da assembléia, em tom ameaçador, disseram que enfrentar os atenienses seria uma insensatez. Arquidamo, o rei espartano, era amigo do líder ateniense Péricles e entendeu o jogo de cena: apesar da fanfarronice, os atenienses queriam paz. A interpretação dos aliados de Esparta, entretanto, não foi a mesma. Tomados por décadas de ressentimento, exigiram guerra contra os arrogantes atenienses. Obrigada a aceitar a decisão, Esparta partiu para o confronto. Atenas não teve como recuar. E, a partir de 431 a.C., o conflito tragou toda a Grécia.

Os gregos lutavam seguindo um rígido código de batalha, que não permitia abusos de violência. Mas, dessa vez, as partes deixaram a ética de lado. “Ódio, frustração e desejo de vingança resultaram em uma progressão de atrocidades, que incluíam mutilação e assassinato dos inimigos capturados. Cidades inteiras foram destruídas, seus homens mortos, suas mulheres e crianças vendidas como escravos”, escreveu Kagan. A guerra terminou com a vitória de Esparta e seus aliados, mas não houve muito o que comemorar. O resultado dos combates arrasou a Grécia e jogou seus habitantes num período de barbárie. Fragilizadas, Atenas e Esparta foram submetidas ao domínio de uma nova potência, a Macedônia.

No século passado, por sorte, Estados Unidos e União Soviética não imitaram atenienses e espartanos. Se a diplomacia grega se parece muito com a nossa, as armas contemporâneas ficaram muito mais letais. O livro de Kagan permite imaginar o que teria ocorrido se a tensão da Guerra Fria tivesse irrompido numa guerra direta. Com mísseis nucleares no lugar de barcos e hoplitas, tudo teria sido ainda mais triste que a legítima tragédia grega do Peloponeso.

Cidadãos, às armas!

Quando Atenas perdeu seus marinheiros, o povo assumiu os remos




Durante a Guerra do Peloponeso, Atenas nunca perdeu a supremacia marítima. O segredo estava na habilidade de seus remadores, capazes de realizar manobras complexas sem desorganizar as três fileiras de remos dos trirremes (os barcos de combate gregos). Mas havia um ponto fraco: os marinheiros eram mercenários. Sabendo disso, em 406 a.C. Esparta se envolveu em negociatas com os persas e conseguiu dinheiro para comprar os serviços dos remadores de Atenas. Em pouco tempo, a maré pareceu estar mudando: depois de alguns combates, a combalida frota ateniense foi encurralada na ilha de Lesbos, no mar Egeu. Atenas fez, então, um último esforço de guerra. A primeira vítima, ironicamente, foi a estátua da deusa da vitória, Nike, que enfeitava a cidade. Ela foi derretida e seu ouro foi usado para montar uma nova frota. Mas quem iria remar? Só os escravos não bastariam. A solução foi convocar os cidadãos. Em vez de usar o voto para decidir os destinos da cidade, eles agora teriam que fazer isso no braço. Com muito improviso, Atenas e seus aliados reuniram 155 barcos. O combate teve lugar nas ilhas Arginusas, perto da costa da atual Turquia, onde Esparta tinha 120 trirremes. Apesar da inexperiência, os atenienses souberam usar sua superioridade numérica: em vez de dispor seus barcos numa fileira única, como era o costume, eles montaram linhas duplas, em que os de trás davam cobertura aos da frente. Surpresos, os espartanos não conseguiram evitar a mais humilhante das derrotas, que incluiu a morte de seu comandante, Calicrátidas. Acostumada a perder um quarto da frota toda vez que enfrentava Atenas, Esparta viu a proporção se inverter. Só um quarto de seus barcos voltou para casa.

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