segunda-feira, 19 de abril de 2010

A crueldade democrática

O ostracismo foi criado pelos atenienses para impedir o abuso dos poderosos na cidade. Só que muitas vezes o expurgo serviu como instrumento de tirania




A democracia, regime político no qual todo cidadão tem direitos e garantias assegurados pelo Estado, foi criada na Grécia, ainda na Antiguidade, e atingiu a sua forma mais refinada em Atenas, após os reforços propostos pelo legislador Clístenes, na última década do século VI a.C. Naquele período, os habitantes do sexo masculino nascidos na Ática ganharam o direito de exercer cargos públicos e, dessa forma, contribuir para o desenvolvimento da cidade-Estado. Porém, até mesmo o sistema constitucional ateniense, que ficou conhecido como democracia direta, tinha um instrumento considerado antidemocrático que até hoje gera controvérsias entre os historiadores: o ostracismo.

Segundo o filósofo Paulo Levorin, doutor em filosofia política pela Universidade de São Paulo (USP), este mecanismo legal foi criado com o objetivo de banir de Atenas os cidadãos considerados perigosos para o bem comum e para o regime democrático. Os tiranos, portanto, seriam os principais alvos. Para isso, era aberto um processo onde as pessoas deveriam indicar se desejavam banir alguém naquele ano para, em seguida, votar secretamente quem seria o eleito ao exílio.

Além de expulsar políticos corruptos, o objetivo do ostracismo também era afastar de Atenas os possíveis ‘baderneiros’ e ‘agitadores’ por um período de dez anos, para evitar guerras internas - ou fratricidas. “O problema existente na introdução da democracia ateniense era a quantidade de confrontos internos: os partidos eram formados em torno de líderes e, uma vez formada uma grande força política vitoriosa, os adversários derrotados eram expulsos”, explica Levorin referindo-se à existência de uma tirania das maiorias na sociedade da Ática, ou seja, o forte acabava oprimindo o mais fraco.

O fator agravante é que esse impasse entre os blocos políticos nem sempre ficava restrito às discussões filosóficas: em diversas ocasiões houve confrontos violentos que resultaram em mortes. “Muitas vezes esse conflito interno resultava em guerras sangrentas que destruíam a cidade, atrasando o desenvolvimento de Atenas”, conta Levorin.

Por conta disso, o ostracismo teria sido inventado por Clístenes para impedir esses excessos: caso alguém almejasse destruir os adversários por meio da força, o próprio povo podia ostracizá-lo. Na prática, isso efetivamente ocorreu, afetando, sobretudo, tiranos e generais desonrados. O próprio povo acabava escolhendo as pessoas que causavam prejuízos à cidade-Estado e decidia afastá-las.

Porém, a crítica que se faz a esse mecanismo jurídico é o excesso de repressão: qualquer heleno poderia ser condenado ao exílio sem chances de se defender, o que configura um instrumento antidemocrático. Além disso, alguns consideram que o ostracismo feria o princípio da isonomia, ou seja, todos deveriam ser tratados da mesma forma. O ostracismo, concebido com o intuito de coibir a tirania e enfrentamentos internos, acabava funcionando, em alguns casos, de forma descontrolada.

APLICANDO O IMPEACHMENT

O termo ostracismo deriva do grego ostraka, que significa caco. Como o papel não era um material muito comum na Hélade, os atenienses usavam pedaços de cerâmica para realizar a votação.

O processo, segundo a historiadora francesa Claude Mossé, era bastante simples. As pessoas se reuniam em assembléia uma vez por ano, na ágora, para indicar se havia interessa em mandar alguém para o exílio. As pessoas escreviam o nome dos possíveis candidatos nas ostrakas. Era necessário um volume mínimo de seis mil cidadãos para legitimar a exclusão - só homens nascidos em Atenas (ou que tinham obtido cidadania local) podiam votar. O pleito era proibido para mulheres, estrangeiros e escravos.

Em seguida, o nome mais indicado nas cerâmicas era colocado em votação: as pessoas teriam um prazo de cerca de dez dias, segundo Levorin, para votar secretamente se desejavam ou não que a pessoa fosse ostracizada. As ostrakas encontradas pelos arqueólogos mostram que nenhuma pessoa pública de Atenas ficou livre da desconfiança do povo: algumas peças mostram que até mesmo Péricles foi apontado como um possível candidato à expulsão, embora efetivamente isso nunca tenha ocorrido.

Mesmo sendo uma decisão unilateral, o exilado não perdia completamente os laços com Atenas. Ele ficava proibido de pisar em solo ateniense por um período de dez anos, mas não perdia as posses e nem a cidadania. Após a década de exílio, a pessoa podia retornar.

Sabe-se que a primeira “vítima” da fúria do povo ateniense foi o político Hiparco, chamado de “amigo dos tiranos” por Aristóteles, conforme conta Claude Mossé. O processo de banimento do político ocorreu cerca de 20 anos após a implementação do ostracismo na constituição de Atenas. Isso, inclusive, levanta outra polêmica. Segundo a historiadora, muitos especialistas argumentam que a ‘paternidade’ do ostracismo não pertence a Clístenes. “Embora Aristóteles atribua a Clístenes, os autores modernos hesitam em aceitar a afirmação do filósofo, visto que a primeira aplicação da lei não se deu antes de 488/7 a.C.”, argumenta.

Sendo assim, percebe-se que o ostracismo foi utilizado pela primeira vez alguns anos depois de sua criação - um sinal de que a tirania pode não ter se manifestado durante esse período. Porém, quando a lei passou a ser usada, fez muitas vítimas.

Segundo Cícero, a melhor forma de manter a influência sobre as massas era se fazer amado. Quem praticasse atitudes antidemocráticas poderia se tornar um bom candidato ao ostracismo

Além de Hiparco, outros conhecidos políticos e generais atenienses também foram condenados ao exílio forçado pelo povo por terem cometido erros estratégicos ou mesmo sofrido derrotas importantes em tempos de guerras. Alguns dos banidos foram o historiador e estratego Tucídides, que lutou contra os espartanos na Guerra do Peloponeso, e o almirante Temístocles, herói da cidade na segunda guerra contra os persas, entre 480 e 479 a.C..

O poeta Cícero discorre na obra Dos Deveres sobre um caráter comum aos helenos da Idade Clássica que pode indicar um dos motivos que levou o povo de Atenas a aceitar a criação do ostracismo por Clístenes: tudo na velha Hélade girava em torno do bem comum da cidade-Estado e, portanto, atos considerados contrários aos interesses públicos poderiam ser qualificados como crimes contra o Estado. É justamente isso que o pensador francês Benjamin Constant classificou como sendo a liberdade coletiva em detrimento da vontade individual das pessoas: os cidadãos não eram livres para fazer o que quisessem, pois deviam sempre trabalhar em prol da nação. A participação política, por exemplo, era obrigatória, e quem se recusasse a exercer cargos públicos poderia ter problemas.

Segundo Cícero, a melhor forma de manter a influência sobre as massas era se fazer amado. Do contrário, a fúria da população poderia ser veemente. Quem praticasse atitudes antidemocráticas desagradando, assim, o povo, poderia se tornar um bom candidato ao ostracismo. Em uma sociedade que valorizava tanto a moral cívica, qualquer comportamento pouco altruísta e mais vaidoso poderia acabar dando origem a processos de exclusão - principalmente se o alvo da discórdia fosse uma pessoa pública.

PUNIDOS PELA EXTRAVAGÂNCIA

Um dos casos mais emblemáticos, para o historiador M. Rostovtzeff , envolveu o general Alcibíades. “Foi um escândalo quando Alcibíades quebrou o costume e adornou a parede de sua casa com pinturas. Atenas era uma democracia e os ricos temiam tornar-se conspícuos pela exibição ou extravagância”, escreveu. “Tempos depois, o estratego ateniense foi julgado e condenado, mas desertou antes de ser capturado, buscando exílio em Esparta”.

Porém, a extravagância não foi o único fator que contribuiu para o ostracismo de Alcibíades. O general era o braço direito do político estadista Péricles e teve muita influência no início dos confrontos contra Esparta, no século V a.C. Com isso, a população temia os efeitos desse excesso de prestígio. “A democracia insistia no seu direito de dispor as pessoas e vidas dos cidadãos quando os interesses do Estado assim o exigiam. A democracia temia os dirigentes demasiadamente influentes da minoria forte, como possível forma de revoluções; portanto, ela os removia pelo princípio conhecido como ostracismo e os sentenciava ao exílio”, analisa o historiador.

O principal receio era de que certos líderes políticos pudessem usar da própria influência para manobrar o povo contra adversários políticos mais fracos, esmagando-os ou mesmo causando guerras civis. Antes que isso pudesse ocorrer, propunha-se o ostracismo da pessoa (muitas vezes seguindo o conselho de outros interesseiros), para expulsá-la. Supostamente, era uma forma de evitar que o indivíduo pudesse se tornar uma ameaça à democracia no futuro.

Foi justamente isso que ocorreu com Temístocles (detalhes no quadro). Sua perspicácia nos mares contribuiu fundamentalmente para a vitória dos exércitos helenos contra os persas na Batalha de Salamina, dando-lhe fama e prestígio. Com isso, adversários ciumentos conseguiram lançá-lo ao ostracismo e, posteriormente, conseguiram acusar o general de alta traição.

Além dele, outra célebre personalidade ateniense também caiu em desgraça mesmo tendo sido importante para a história da cidade-Estado. Trata-se do escultor Fídias, que participou ativamente do projeto arquitetônico de Atenas a pedido de Péricles. Foi ele quem concebeu a estátua de Athena Parthenos, que adornava o interior do Partenon, na acrópole, e o templo de Zeus em Olímpia, no Peloponeso - uma das sete maravilhas do mundo antigo.


O importante general ateniense Aristides (530 -468 a.c.)
foi ostracisado em 483. Conta-se que um dos votantes
disse-lhe que queria banilo apenas porque não
agüentava mais ouvir o nome de “Aristides, o Justo”.

Contudo, o uso do ostracismo se mostrou perigoso demais, já que, no fim, qualquer heleno poderia ser expulso da Ática sem muitos critérios para a escolha, pois um líder político eficiente poderia manipular o povo para excluir certos adversários - isso demonstrava a grande fraqueza deste instrumento político. No fim, acabava sendo um mecanismo utilizado como forma de perseguição política. Alguns pesquisadores defendem que Alcibíades, mesmo sendo um traidor, também foi vítima de discórdias políticas. “No geral, não passou de 15 o número de ostracizados em Atenas”, diz Paulo Levorin. “O ostracismo era uma instituição marginal, pois não tinha características essencialmente democráticas. Qualquer democracia poderia viver sem isso”.

ALGUMAS VÍTIMAS DA LEI ATENIENSE

Praticamente todos os ostracisados eram figuras de relevo na política de atenas e acabaram ficando para a história. saiba a razão da expulsão de alguns deles.

TUCÍDIDES

Um dos casos mais marcantes da prática do ostracismo em Atenas envolveu o general e historiador Tucídides, eleito um dos dez estrategos da cidade no combate aos espartanos na Guerra do Peloponeso, no século V a.C. Porém, sua participação no conflito foi desastrosa, o que resultou na expulsão por ostracismo.




Tucídides nasceu entre 460 e 455 a.C. Filho de Olorus, que era dono de uma mina de ouro na Trácia, no norte da Hélade. Em 424 a.C. ele confrontou o exército espartano na Batalha de Anfípolis. Embora os atenienses fossem mestres no combate marítimo, as trirremes de Esparta, comandadas pelo general Brásidas, conseguiram subjugar a esquadra da Ática, conquistando a região. A derrota deixou Atenas em uma situação difícil, já que a região era estratégica. Isso desonrou Tucídides, que foi condenado ao ostracismo pelo povo.

Porém, para o estratego, o exílio teve um ponto favorável: durante o tempo em que ficou afastado de Atenas, dedicou-se a escrever um livro para analisar os motivos e conseqüências do conflito tornando-se um dos principais historiadores do período Clássico ao lado de Heródoto, Xenofonte e alguns outros. Sua obra, “História da Guerra do Peloponeso”, é usada como referência até hoje por quem quer conhecer a essência dos antigos helenos, justamente pelo caráter imparcial da avaliação dos fatos.

Tucídides foi anistiado em 404 a.C., quando voltou para Atenas, mas foi assassinado por volta de quatro anos depois, na Trácia, morto por assaltantes. Por conta de sua morte, a narrativa da Guerra do Peloponeso foi interrompida, já que o historiador não conseguiu concluir a obra.

FÍDIAS

O escultor, pintor e arquiteto Fídias, um dos maiores ícones da arte helênica do período clássico, também foi outra vítima do ostracismo ateniense. Renomado já em seu templo, Fídias foi o responsável pela construção da estátua do Templo de Zeus, uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo, em Olímpia, no Peloponeso.




Por volta de 453 a.C., foi incumbido pelo estadista Péricles de supervisionar as obras de revitalização de Atenas com a criação de projetos arquitetônicos inovadores - que deram origem à ‘nova’ acrópole da Ática. Foi condenado por supostamente ter se apropriado de parte do ouro destinado às obras.

Uma das explicações do historiador beócio Plutarco para a condenação de Fídias é que inimigos de Péricles tentaram afetá-lo politicamente acusando o escultor, um grande aliado. Sendo assim, ele teria sido capturado em Élis, por volta de 430 a.C., e morreu na prisão.

Porém, a tradição clássica apontada por outros historiadores diz que Fídias foi condenado por roubo. Ao término da escultura de Athena Parthenos, uma estátua de 12 metros que ficava localizada dentro do Parthenon, na acrópole ateniense, foi considerado traidor: ele teria se apropriado de parte do ouro destinado à ornamentação da obra. Com isso, o povo ateniense decidiu bani-lo por roubo, forçando o escultor a se refugiar em Olímpia. Contudo, nem no Peloponeso ele encontrou sossego: foi acusado de ter colocado uma imagem de Péricles ao lado do escudo de Atenas, e foi caçado por sacrilégio.

TEMÍSTOCLES

Sem a ajuda do general Temístocles, provavelmente a Hélade teria caído durante a segunda invasão persa, que ocorreu entre 480 e 479 a.C. Foi o ateniense quem convenceu o povo a usar o dinheiro obtido da exploração de uma mina de prata no Láureo na construção de uma frota de trirremes, as embarcações de guerra da época, que serviram para destroçar os barcos de Xerxes na Batalha de Salamina. Contudo, foi condenado ao exílio por anos e, mais tarde, acusado de alta traição.




Por conta de sua atuação nas Guerras Médicas, o prestígio de Temístocles logo cresceu em Atenas. Porém, com o fim dos conflitos, essa situação começou a mudar aos poucos. O herói ateniense começou a perder a confiança da população - em parte por conta de sua arrogância. Alguns historiadores defendem que a fama do general desagradava seus inimigos políticos. Eles, por sua vez, podem ter feito manobras para estimular seu ostracismo.

Segundo Plutarco, Temístocles foi ostracizado entre 476 e 471 AC, quando teria se instalado em Argos, no Peloponeso, cidade-Estado inimiga de Esparta. Porém, os espartanos começaram a acusar o ateniense de envolvimento com os persas, forçando-o a se isolar na Ásia Menor. Depois disso, foi proclamado traidor de Atenas e teve todas as suas propriedades tomadas pelo Estado.

Curiosamente, Temístocles buscou refúgio junto ao império Persa, que o aceitou, pois ele poderia ser fundamental em uma possível investida contra os helenos. Porém, a tradição conta que ele teria se envenenado para não ser obrigado a ajudar os asiáticos em uma nova guerra contra a Hélade.

SÓCRATES

O filósofo Sócrates, um dos grandes ícones do pensamento heleno, não chegou a ser banido da cidade-Estado pelo ostracismo, mas causou tanto ódio no povo de Atenas que foi condenado à morte supostamente por desrespeitar os deuses e deturpar o pensamento dos jovens.




Segundo o historiador M. Rostovtzeff, Sócrates era um homem que acreditava nos deuses e, eventualmente, fazia oferendas nos templos. Ele também não se opunha ao regime democrático ateniense, mas apontava as falhas do sistema político, principalmente no que se refere ao fracasso em educar os cidadãos para assuntos governamentais. O filósofo defendia que as pessoas deveriam se dedicar ao próprio conhecimento, deixando de lado qualquer aspiração material. Ele se dedicava a tentar educar as pessoas, mas recusava-se a ter discípulos.

Uma das coisas que mais desagradou os magistrados atenienses foi justamente o método socrático de filosofar. Sócrates provocava os cidadãos da Ática perguntando se eles sentiam-se verdadeiramente livres. Ao ouvir a resposta afirmativa, o filósofo contestava e, no fim, acabava provando que os indivíduos não têm liberdade tanto quanto acreditavam. Platão mostra essas discussões em seus diálogos.

Rostovtzeff conta que o filósofo foi levado a julgamento sob acusações de heresia e corrupção dos jovens. Ao tribunal, tentou justificar que seus acusadores tinham uma concepção errada das coisas, mas acabou aceitando sua condenação à morte. Sócrates teve a chance de fugir de Atenas, mas preferiu beber a cicuta e seguir a determinação da justiça ateniense.

.:: Revista Leituras da História

Um comentário:

Raitler Matos disse...

Tudo muito interessante. Parabéns pelo trabalho