quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Harappa: cidades perdidas

A primeira civilização da Índia e uma das maiores da Antigüidade, foi tão desenvolvida quanto o Egito e a Mesopotâmia.
Mas sua história está apenas começando a ser desvendada





O vaivém de peregrinos é intenso, frenético, louco. Eles chegam aos montes, vindos de pequenos vilarejos vizinhos, nos vales ao leste do Paquistão. As ruas, tomadas por mercadores itinerantes, ganham, aos poucos, o colorido dos artistas performáticos e das trupes de circo. Músicos ajudam a entreter as multidões. Luzes e sons misturam-se. Mulheres gazeteando pelas vias procuram peregrinos mais experientes, para dar a eles as oferendas religiosas que serão repassadas a divindades de lugares distantes – tudo para garantir que, no futuro, seus filhos sejam saudáveis e – preferencialmente – do sexo masculino. À primeira vista, este é apenas mais um tradicional ritual de cultura popular, desses que o tempo insiste em manter vivos.

E é mesmo. Conhecido por sang – algo como “feira de encontro” –, é realizado até hoje nas grandes cidades do vale do rio Indo, perto da fronteira entre o Paquistão e a Índia. Mas esconde uma curiosidade. Remete a uma das civilizações mais desenvolvidas de toda a Antigüidade, um povo que viveu ali, na mesma região, há milhares de anos. Não eram egípcios, nem mesopotâmios, tampouco chineses. Esse povo esquecido atingiu um surpreendente grau de desenvolvimento, comparável inclusive ao dos célebres vizinhos. A diferença é que não ficaram tão conhecidos – pelo menos nos dias de hoje –, embora tenham interagido profundamente com algumas dessas culturas avançadas. Eles eram a civilização do Vale do Indo, ou civilização harappiana, nome derivado de sua principal cidade, a capital Harappa.

Por volta de 3000 a.C., numa época em que Egito, Mesopotâmia e China começavam a esbanjar desenvolvimento e a ocupar o centro do mundo, os harapiannos floresciam no vale do rio Indo. Como as potências vizinhas, também dominavam técnicas e conhecimentos inimagináveis para aquele período da história. No seu auge, entre 2600 a.C. e 1900 a.C., espalharam-se por mais de 1500 vilas e estenderam-se por uma área duas vezes maior que o próprio Egito antigo e a Mesopotâmia. Ergueram cidades amplas e muito bem planejadas, com sistemas de drenagem sofisticados e prédios muitos complexos, e já conheciam as técnicas de fundição a mais de 930°C. Eram artesãos habilidosos que se destacavam principalmente por seus trabalhos com cerâmica e argila.

O conhecimento traçou os rumos de Harappa. Seus habitantes abriram rotas comerciais que os levaram ao Golfo Pérsico, à Ásia Central e à Mesopotâmia. Por outro lado, as cidades harappianas viraram centros de comércio do mundo antigo. O artesanato local espalhou-se, tendo sido encontrado até nos sítios arqueológicos mesopotâmios. Textos antigos desta civilização, as inscrições cuneiformes, também comprovam o contato entre as duas culturas. Falam sobre o comércio com povos originários da distante Índia, que costumavam chamar de Meluha e Makkan. Assim como ainda acontece atualmente, naquela época os moradores dos pequenos vilarejos harappianos iam para as grandes cidades em dias de festivais – ou feiras de encontro, para comprar, vender ou trocar produtos, participar de cerimônias e até para rever familiares.

Democracia e Religião

Apesar de ser a maior das quatro civilizações da Antigüidade, o Vale do Indo só foi descoberto em 1920, quando arqueólogos escavaram parte das ruínas de Harappa e Mohenjo-daro, as duas maiores cidades da região, áreas que hoje correspondem às províncias paquistanesas de Punjab e Sindh, respectivamente. Mesmo assim, ainda há muito a ser escavado e, principalmente, desvendado. Questões básicas sobre estes povos continuam sem respostas. Vários sítios arqueológicos permanecem intocados, incluindo grandes cidades, e sua escrita está longe de ser decifrada. Alguns pontos, porém, são dados como certos.


Ruínas da cidade de Harappa.


Ruínas da cidade de Mohenjo-daro.

A semelhança entre as plantas e a arquitetura das cidades harappianas, por exemplo, mostram que o Vale do Indo mantinha uma estrutura social e econômica uniforme. A economia era baseada na produção agrícola e nas atividades comerciais. Ou seja, comerciantes e artífices tinham grande influência na sociedade e, muito provavelmente, compunham a elite dominante. O povo era pacífico e não apresentava uma cultura belicosa, embora possuísse armas como lanças e espadas. Não havia reis nem teocratas – prova disso é a inexistência de palácios e templos suntuosos, mesmo nas ruínas das grandes cidades. As maiores construções eram mercados e prédios de banhos públicos, algo tão sofisticado para época que nem mesmo no Império Romano, dois mil anos depois, este tipo de facilidade chegava às classes mais baixas. “As principais edificações não são voltadas para os líderes, mas sim para a população. Isso sugere, inclusive, que havia um possível exercício arcaico de democracia, baseado principalmente em valores econômicos”, comenta o professor de cultura da Índia e língua sânscrita Carlos Eduardo Barbosa, do Instituto Narayana, de São Paulo.

Essa organização social não exclui, no entanto, a participação e a influência de líderes religiosos na sociedade. É provável que eles tenham sido a chave para manter unida uma civilização tão abrangente, que não tinha como característica usar a força para subjugar outros povos.


Selo encontrado em Mohenjo-Daro.

Apesar de não haver provas arqueológicas da existência destes líderes, existem estudos que indicam que eles formavam uma elite dominante, que manteve a hegemonia por meio da religião e de rituais sagrados. “É o que aconteceu mais tarde com o hinduísmo, em que milhões de pessoas permaneceram unidas não pelo uso da força, mas sim da persuasão”, pondera Iravatham Mahadevan, do Conselho de Pesquisa Histórica da Índia, que há mais de 30 anos estuda a escrita do Vale do Indo. “Além disso, existem selos encontrados nos sítios arqueológicos que mostram a prática de rituais sagrados, com adorações a deuses nus, sentados em posição de yoga”, acrescenta Mahadevan.

Apogeu e decadência

Embora não se saiba muito da cultura do povo harappiano, sabe-se que a cidade de Harappa viveu seu boom econômico entre os séculos 2800 a.C. e 2600 a.C. Foi nesse período que os artesãos desenvolveram técnicas avançadas de manipulação de argila e outras matérias-primas, criando tijolos simétricos de barro e objetos refinados de cerâmica cobertos por uma espécie de esmalte. A fabricação de produtos têxteis também decolou aí. Enquanto os egípcios notabilizavam-se pela manufatura de peças de linho, os harappianos teciam com algodão. Surgiu nessa época ainda o sistema formal de escrita local, estampada em vários vasos e selos de argila encontrados nos sítios arqueológicos.


Arte Harappiana.

Estes objetos, ilustrados com figuras geométricas ou representações de animais, parecem ter tido uso comercial ou administrativo. Seriam usados basicamente pela elite dominante e funcionavam como um mecanismo de controle econômico e demonstração de poder político.

Alguns pesquisadores, como Mahadevan, acreditam que eles também indicavam os títulos de seus usuários e até nomes e profissões. Para os harappianos, seria algo útil numa cidade que chegou a ter cerca de 80 mil habitantes, segundo as estimativas do arqueólogo Jonathan Mark Kenoyer, professor de antropologia da Universidade de Wisconsin e um dos líderes dos grupos de escavações dos sítios arqueológicos. Esses e outros segredos de Harappa, no entanto, continuam escondidos atrás de um enigma: a indecifrável escrita do Vale do Indo.

Depois de quase dois mil anos de existência, a civilização do Vale do Indo começou a entrar em declínio. Várias teorias explicam esta fase, mas nenhuma é unânime. A mais aceita combina uma série de motivos. O primeiro deles seria a incapacidade da elite em manter a ordem num território tão vasto e povoado, que por volta de 1900 a.C. já se estendia para além das planícies do rio Ganges. “Essa falta de autoridade levou a uma reorganização da sociedade, não apenas em Harappa mas em toda a região do Vale do Indo”, escreveu Kenoyer em artigo publicado na revista Scientific American. Prova disso é o desaparecimento gradual de símbolos característicos da região, como os selos, vasos e pesos usados na taxação e comércio de produtos.

Outro fator importante para a queda da civilização harappiana foram as alterações climáticas que ocorreram ao longo dos séculos, possivelmente causadas pelo crescente desflorestamento para obtenção de matérias-primas. Em 2000 a.C., um dos mais importantes rios da região, o Sarasvati, começou a secar e deixou várias cidades sem uma base viável de subsistência. Estas populações teriam migrado para áreas agrícolas e cidades como Harappa e Mohenjo-daro, superpovoando lugares que não tinham estrutura para receber mais pessoas. Por conseqüência, os mecanismos de manutenção das rotas comerciais acabaram comprometidos.

Uma das teorias mais antigas, porém, conta outra história. Teria havido uma simples dispersão da população para outras regiões. Mas esta é uma hipótese pouco considerada pelos estudiosos atualmente. “Vestígios arqueológicos encontrados em escavações recentes mostram que as cidades continuavam habitadas entre 1900 a.C. e 1300 a.C.”, escreveu Kenoyer. Uma terceira tese atesta ainda que os harappianos foram aniquilados pelos indo-arianos a partir do segundo milênio antes de Cristo. De fato, o período entre o ano 2000 a.C e o ano1300 a.C. foi bastante conturbado, com guerras eclodindo em várias partes do mundo. Além disso, existem indícios de batalhas nos sítios arqueológicos do Vale do Indo.

Mesmo assim, é pouco provável que os indo-europeus tenham destruído toda a civilização. A maioria dos especialistas acredita que a imigração ariana aconteceu depois que os harappianos entraram em declínio – e a relação entre estes povos foi muito provavelmente pacífica. “Quando chegaram à região, os indo-europeus tornaram-se sedentários e seus rebanhos ajudaram a fertilizar os campos agrícolas. Em troca, seus cavalos alimentavam-se da palha da cevada que era produzida pelos agricultores”, argumenta Barbosa. E por fim há uma hipótese indiana ultra-nacionalista, que acredita no caminho inverso ao ensinado pelo etnocentrismo europeu. Ela defende a idéia de que a civilização do Vale do Indo deu origem aos védicos, povos que surgiram logo em seguida aos harappianos e formularam o Rig Veda, a mais antiga escritura sagrada hindu. De acordo com a tese, eles conquistaram os sumérios e teriam expandido seus domínios para o oeste, influenciando também os povos do Ocidente. Ufanismo? Pode ser. Mas esta também é mais uma pergunta que continua sem resposta.

Altos e baixos no Vale do Indo

Os harappianos deixaram uma herança para a Índia

3300 a.C. – 2800 a.C.
É a primeira fase da civilização harappiana, chamada de Ravi. No começo deste período, plantam trigo, cevada e leguminosas. Técnicas especializadas de artesanato avançam pelo vale do rio Indo e as primeiras rotas comerciais começam a se desenvolver, com pequenos vilarejos formando-se ao seu redor. Na mesma época, sumérios construíam os primeiros zigurates e egípcios enterravam seus mortos junto com suas riquezas em túmulos de tijolos de barro.

2800 a.C. – 2600 a.C.
Período conhecido como Kot Diji. Harappa torna-se um próspero centro econômico, dando início à urbanização. Artesãos aprimoram suas técnicas e produzem peças refinadas de cerâmica esmaltada, trabalhando com fornos em altas temperaturas. Aumenta a quantidade de matérias-primas que chegam à cidade, em carroças e barcos. Rodas feitas de terracota surgem neste período.

2600 a.C. – 1900 a.C.
É o apogeu da civilização do Vale do Indo, com mais de 1.500 vilas espalhadas por uma área muito maior do que a de todas as antigas civilizações juntas, com exceção da China. As rotas comerciais chegam até o Golfo Pérsico, à Ásia Central e à Mesopotâmia. Cidades amplas e bem planejadas multiplicam-se, com sistemas de drenagem e prédios sofisticados.

1900. a.C. – 1300 a.C.
Uma série de fatores ocasiona a queda de Harappa. Entre os motivos estão até variações climáticas, que provocaram a seca do rio Sarasvati. Há indícios de batalhas nos restos arqueológicos, mas pesquisadores não acreditam que a civilização tenha sido aniquilada por outros povos. A cultura em torno do Ganges assume a hegemonia.

1300 a.C. – 1000 a.C.
Uma nova ordem social entra em vigor. Seguidores da religião védica, que falam línguas indo-arianas, como o sânscrito, povoam o subcontinente indiano. O urbanismo e a arte harappiana, no entanto, sobrevivem. Artesanatos continuam sendo produzidos na região do Vale do Indo, embora adaptados a novas exigências. Surgem garrafas e contasde vidro. Mais tarde, desenvolvem, paralelamente ao Ocidente, o aço.

A sociedade das castas

Com o fim de Harappa, a Índia foi retalhada. Surgiu em cena o modelo que bagunça a estrutura social do país até hoje

A divisão da sociedade indiana em castas surgiu da turbulência social e das invasões do subcontinente, logo após o declínio de Harappa. Foram criadas pelos védicos (hindus), na tentativa de instaurar a ordem e acalmar os ânimos das diferentes lideranças. A idéia era instituir territórios culturais das linhagens familiares. No início, quatro castas foram estabelecidas a partir da observação das aptidões naturais de cada grupo: brâhmanes, a classe dos sábios, sacerdotes e professores, incumbidos da orientação espiritual e aconselhamento dos governantes; kshatrias, a casta guerreira, encarregada de manter a ordem política e garantir a proteção social; vayshias, composta por comerciantes, artesãos e grandes proprietários de terras, responsáveis pela economia da sociedade; e shudras,ou trabalhadores braçais, que deveriam seguir os desígnios das outras três classes. De acordo com a teoria da invasão indo-ariana, esta era a casta dos harappianos, depois que foram assimilados pelos védicos. Com o passar dos anos, as castas multiplicaram-se e, hoje, estima-se que haja mais de 2000. Surgiram, por exemplo, os párias, cujo grau mais baixo é o dos chantalas – ou intocáveis, pessoas sem função social, como mendigos e andarilhos. O sistema das castas durou com relativa organização até o século 17, quando foram declaradas hereditárias. Até então, havia alguma mobilidade e pessoas de uma determinada classe poderiam ascender socialmente. Com a nova medida, a bagunça foi geral. Chegou a tal ponto que, no século 19, o guru hindu Sri Ramakrishna declarou o fim das estratificações. Oficialmente, porém, a estranha divisão da sociedade perdurou até 1960, quando as castas foram finalmente banidas por lei. Mas, na prática, a história é diferente. Até hoje elas são mantidas vivas pelo preconceito e por iniciativas do próprio governo indiano, que cria empregos, por exemplo, apenas para castas menos privilegiadas.

Que língua é essa?

Como ninguém consegue decifrar o harappiano, a civilização do Vale do Indo permanece envolta em mistérios que estão longe de serem desvendados

O povo de Harappa deixou ruínas de grandes cidades como herança arqueológica, mas a única forma de escrita encontrada pelos pesquisadores são as pictografias dos selos e outros ornamentos artesanais. Decifrá-las segue sendo o desafio de estudiosos mundo afora. Primeiro, porque não existe – ou, pelo menos, não foi descoberta – uma Pedra de Roseta que contenha inscrições em duas línguas para ajudá-los a quebrar o código. Além disso, a variação de sinais dos milhares de selos achados pelos arqueólogos é muito pequena – há uma média de cinco por objeto, apenas, repetidos em outras peças. "Tudo indica que a disposição é totalmente aleatória. Se alguém encontrar uma placa de automóvel daqui a milhares de anos, por exemplo, dificilmente vai dizer que se trata de uma forma de escrita", compara o professor Carlos Eduardo Barbosa.

É certo que estes sinais foram amplamente difundidos na maioria das cidades da civilização harappiana, por causa da unidade cultural e das necessidades econômicas desses povos. A maior parte dos selos reproduz, também, figuras de animais e objetos usados em rituais. A imagem de unicórnios é a mais comum (aparece em 65% das peças), mas há desenhos de elefantes, búfalos, tigres, rinocerontes e outros animais.

Uma possibilidade sustentada por pesquisadores é a de a escrita harappiana ser a forma arcaica de alguma língua dos dravidianos, que habitaram o norte e noroeste do subcontinente. Como o balúchi por exemplo, que ainda é falado no Baluchistão e em algumas partes do Irã. "Mas isso é apenas uma teoria. A única coisa que podemos dizer é que são sinais escritos da direita para a esquerda, assim como o árabe e ao contrário do sânscrito", avalia o estudioso indiano, Iravatham Mahadevan. Mas ele ainda tem esperança de encontrar a chave da antiga civilização. "Sempre existe a possibilidade de se descobrir algo novo, um objeto ou mesmo uma tábua de argila bilíngüe, em lugares como o Oriente Próximo. Os harappianos fundaram espécies de colônias por lá e é bem capaz de terem fabricado objetos com traduções na língua local".

.:: Revista Aventuras na História


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Um comentário:

Anônimo disse...

Meu seu blog é espetacular, show, not°10 desejo muito suceso em sua caminhada e objetivo no seu Hiper blog e que DEUS ilumine seus caminhos e da sua família
Um grande abraço e tudo de bom
Ass:Rodrigo