sábado, 17 de outubro de 2009
Manteña: Fenícios da América
Durante centenas de anos, os manteña dominaram o comércio marítimo na costa americana do Pacífico. Novos achados estão deixando os arqueólogos cada vez mais fascinados por esses hábeis navegadores.
O ano é 1526. No litoral do Pacífico, na costa da América do Sul, o navegador espanhol Bartolomé Ruiz leva o maior susto de sua vida.
Ele abre e fecha os olhos, incrédulo, mas é tudo verdade. À sua frente, surgem embarcações a vela que levam até 20 pessoas cada.
A tripulação, indígena, não se intimida quando vê os europeus. Ruiz, que navegava com apenas oito homens, decide não enfrentá-los.
Ele havia acabado de se encontrar com os manteña, o povo que foi apelidado pelos pesquisadores de “fenícios da América” – em referência à civilização da Antiguidade que se notabilizou pelo comércio náutico.
O encontro com os europeus selou a sorte dos nativos, originários de onde hoje é o Equador. O intercâmbio feito com locais tão distantes como os atuais México e Chile seria aniquilado pelos conquistadores.
Agora, 500 anos após o primeiro contato, o passado do povo que dominou as rotas do Pacífico americano começa a vir à tona.
Nos últimos anos, pesquisadores vêm encontrando restos de embarcações e objetos na baía de Caráquez, na ilha de La Plata e em Chirije, na costa equatoriana.
Tudo isso permaneceu preservado durante séculos, já que, no ano 700, um vulcão entrou em erupção e cobriu a região de lava. Mas tempestades provocadas pelo fenômeno El Niño desenterraram esse tesouro arqueológico.
“Estamos descobrindo importantes registros da cultura manteña na praia, é incrível”, diz Ruth Cantos de Moura, administradora do recém-inaugurado Museu Arqueológico da Baía de Caráquez.
“Esses achados mostram como outras civilizações, além dos incas, estavam desenvolvidas quando os espanhóis chegaram. Os manteña tinham rotas marítimas e comerciais tão sofisticadas como as dos europeus da época.”
Eles vendiam desde tecidos com ricos bordados até adornos de ouro, prata e platina. Mas o objeto responsável por impulsionar esse intenso vaivém pelo Pacífico foram as enormes e lustrosas conchas Spondylus.
Elas eram sagradas para os manteña e fizeram com que eles se lançassem ao mar para buscá-las. “A concha era associada ao órgão sexual feminino, simbolizava a fertilidade.
Era usada em rituais religiosos e como adorno pela elite. Era quase tão valiosa quanto os metais preciosos”, diz o arqueólogo Javier Véliz Alvarado, do Museu Salinas, no Equador.
Mas colocar as mãos numa Spondylus não era nada fácil. A concha existia em grande quantidade na ilha de La Plata, a 25 quilômetros da costa do Equador.
O problema é que os espécimes, que podem facilmente atingir o tamanho de um prato, ficavam a até 30 metros abaixo do nível do mar. E, para chegar à ilha, era preciso enfrentar duas intensas correntes de ventos, além de fortes correntezas marítimas.
Os historiadores acreditam que, há cerca de 3 500 anos, os habitantes do litoral equatoriano tenham feito barcas rudimentares com o objetivo de chegar à ilha.
“As travessias devem ter constituído um grande aprendizado. Pode ter sido aí que começaram a adquirir conhecimento sobre navegação e construção de barcos”, afirma Alvarado.
Navegar é preciso
Segundo os historiadores, a Spondylus não era só cultuada no Equador. Foram encontrados vestígios de adoração também no Peru, norte do Chile, América Central e México.
Para comercializá-la com outros povos, os manteña precisavam de barcos maiores, que resistissem bem a longas viagens.
“Eles já navegavam grandes distâncias, de até 1 200 quilômetros, mas não eram mercadores ainda”, diz o historiador e arqueólogo Victor Hugo Arellano, membro-fundador da Academia Equatoriana de História Marítima. “Só a partir do século 5 a.C. é que eles se tornaram grandes comerciantes.”
As técnicas navais continuaram se desenvolvendo e, no ano 500, as condições já eram perfeitas para que os manteña se tornassem os fenícios da América.
Eles utilizavam o algodão para fabricar as velas das embarcações, construídas à base do chamado palo de balsa, obtido de uma árvore que só existe no litoral do Equador, a Ochroma logopus. Sua madeira é muito leve, se expande com a água e jamais afunda.
As embarcações mediam 6 metros de comprimento por 3 de largura, em média. Numa extremidade ficava uma casinha de bambu coberta por um telhado de folhas, usada para a tripulação descansar.
Na outra, eram estocados alimentos e bebidas. Exímios pescadores, os manteña não passavam fome a bordo e agüentavam viajar até 90 dias.
“Bem diferente dos espanhóis, que pegavam mil e uma doenças durante as navegações e sofriam com a escassez de alimentos nas caravelas”, afirma Jaboco Santos, diretor do Museu Arqueológico da Baía de Caráquez.
Quando os espanhóis chegaram, o comércio marítimo dos manteña vivia seu apogeu. Suas embarcações estão nos relatos dos primeiros europeus que estiveram na costa americana do Pacífico.
“Elas levam toda a sorte de mercadorias, e a carga que podem suportar é grande, de 2 toneladas, e isso sem que se encham de água”, escreveu o próprio navegador Bartolomé Ruiz em uma crônica de viagem de 1526.
As rotas comerciais eram tão bem estabelecidas e organizadas que até mesmo os poderosos incas preferiram comercializar com os manteña a dominá-los.
Como os fenícios da América também navegavam por rios, iam até o interior para negociar. “Foram encontradas cerâmicas dos manteña e a Spondylus em cidades incas, o que demonstra que as culturas conviveram”, diz o arqueólogo Javier Véliz Alvarado.
As recentes descobertas permitem supor que, nas cidades dos manteña, podiam viver mais de mil pessoas.
As casas eram de madeira, com piso de pedra e teto de palha ou folhas. Na hierarquia social, a elite eram os sacerdotes e donos de embarcações, a quem pertenciam as residências maiores (geralmente situadas nos locais com vista privilegiada).
Depois vinham os artesãos, agricultores e caçadores. Os catadores de conchas eram a classe subalterna.
Plantava-se de tudo: mandioca, milho, batata, tomate, cacau, alho e abacate. Eles também caçavam, principalmente veados, e criavam lhamas e patos.
Quando os espanhóis chegaram ao Equador, no início do século 16, dominaram primeiro as civilizações dos Andes.
Só depois se deram ao trabalho de subjugar os manteña. “Eles só não foram dizimados porque os espanhóis estavam de olho nas riquezas dos incas”, diz Victor Hugo Arellano.
Mas a interrupção de suas rotas comerciais, feita pelos conquistadores, acabou com seu modo de vida.
O povo manteña existe até hoje, morando nos mesmos lugares que seus antepassados. É verdade que perderam o comércio marítimo, mas ainda permanece a lembrança de seu passado glorioso.
Na Baía de Caráquez, é comum ver barcos exatamente iguais aos de mil anos atrás, feitos pelos nativos.
A cada mês de outubro, eles fazem uma celebração em homenagem a sua história gloriosa, saindo pelas praias do Pacífico nessas mesmas embarcações.
Homem ao mar
A arriscada profissão dos catadores de conchas
Para conseguir as conchas sagradas, mergulhadores tinham que descer até 30 metros nas profundezas do mar. Um saco de pedras preso ao corpo era usado para que afundassem mais facilmente.
Quando achavam uma Spondylus, arrancavam-na das rochas com ferramentas de metal e eram içados pelos barqueiros por meio de uma corda amarrada à cintura.
É provável que muitos morressem durante a operação, que era retratada em cerâmicas e moedas. Os catadores eram a base da pirâmide social mas, às vezes, podiam chegar a comprar seu próprio barco.
“Acredita-se que famílias influentes do Equador atual descendam de catadores de conchas”, afirma o historiador Victor Hugo Arellano.
De costa a costa
Vestígios desenterrados peloEl Niño ajudam a reconstituir as quilométricas rotas dos manteña
Até pouco tempo atrás, a Baía de Caráquez, no litoral norte do Equador, era uma região quase abandonada. Hoje ela está entre as mais procuradas pelos arqueólogos na América Latina.
Não é à toa: ali foram descobertos vestígios de um porto que os especialistas crêem ter sido utilizado pelos manteña, com restos de embarcações de mais de 2 mil anos, cerâmicas igualmente antigas, fornos de pedra e um enorme reservatório de água.
No século 7, uma erupção vulcânica soterrou o porto, que permaneceu oculto até a fúria do El Niño desenterrá-lo entre 1997 e 1998.
Os penhascos próximos à praia, onde estavam escondidos muitos objetos milenares, foram destruídos pelo fenômeno climático – e um tesouro arqueológico surgiu a céu aberto. Na ilha de La Plata também estão sendo explorados importantes sítios arqueológicos.
A descoberta mais impressionante é uma estrutura utilizada para cerimônias religiosas, em que animais sagrados, como o veado e o jaguar, eram sacrificados.
É provável que os incas e populações de distantes pontos da América do Sul também freqüentassem as celebrações feitas no local. “Lá foram encontradas cerâmicas de várias culturas”, diz o historiador Victor Hugo Arellano.
Originários de Caráquez, os manteña montaram uma rede comercial que ia do atual México até o Chile contemporâneo.
Livros
Archaeology of Formative Ecuador, J. Scott Raymond, Dumbarton Oaks Research Library and Collection, Washington D.C., 2003 - Obra de referência, traz tudo sobre as rotas marítimas dos manteña e a história pré-colombiana do Equador.
La Historia del Nuevo Mundo, Girolamo Benzoni, Alianza, 1989 - Registra as impressões dos europeus do século 16 sobre os povos que viviam na América.
Fonte: História / arquivosdoinsolito
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